sexta-feira

poema lento


[escultura submarina de Jason deCaires]
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Ser o avesso de mim...
e do avesso ser você num capricho ao sol...
bater com os punhos fechados no céu para ouvir...
o não-movimento no seio do não-tempo em teus seios...
adentrar teu reino que nem o luar adentra a mata...
lentamente...
e o burburinho das eras passando arrastadas pela velha estrada...
a carregar impérios solares e cartas de amor em seus lombos...
e as grandes capitais todas inundadas e desertificadas pelo êxodo final...
os carvalhos exercendo seu reino prometido sobre a terra...
evoluindo uma linguagem de amor e trevas mornas...
para finalmente compor uma grande palavra planetária...
um código universal dos carvalhos-deuses...
cuja face está gravada em nossa memória há muito tempo...
nossa face a expressão dessa memória ancestral...
coberta pela crosta do esquecimento e da preguiça...
a compor padrões delicados...
a tua face...
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beijar tua face...
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e tua boca envolver como a um fruto...
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num esmaecer de cores...
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sábado

Serpieri quatro


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sexta-feira

poema de outono, para Tarkovsky

...um sentimento abstrato de não-pertencimento,
de estranhamento para com as coisas do mundo.
Uma desconexão mais ou menos leve,
sem dor ou prazer anexados necessariamente,
estendendo-se por toda a alma,
como se esta fosse desvincular-se do corpo
sem projetar sombras,
deixando para trás apenas um rastro de odores sutis.
Seria o dia então uma massa
sem pensamentos, palavras, movimentos que lhe infudissem
qualquer realidade mais válida
que a branca espiral de vento
no vértice entre o aqui e alhures,
entre o agora e o outrora,
entre o ser e o porvir.
Sim, eu imagino essa sublevação...
E nos caminhos que trilhamos,
nas estações em que nos esquecemos,
nos apartamentos onde naufragamos lentamente,
ano após ano,
década após década,
sim, lá estará o jato branco
nas costas da baleia branca,
sempre à frente.
Sonhei que era criança novamente...
Sentia-me feliz por todas as possibilidades
estarem abertas mais uma vez,
por estar cônscio da indefinição
deliciosa da imaturidade,
por não esperar do mundo
mais do que aquilo que ele me dá
a cada momento.
Mas vivemos amores,
tocamos músicas,
somos tocados
por fluidos aéreos e benéficos,
definimos nossas ações,
impomos nosso caráter progressivamente,
sentimos o estreitamento do potencial
em direção ao atual,
que por sua vez escoa para o esquecimento...
Então,
após vinte anos,
sobrevém o mar interior,
represado,
de um ser feito para o Amor, mas vivendo a Grande Queda.
Um lago gargantual,
de criaturas abissais,
de peixes-voadores e garças selvagens.
Pronto para despejar seu conteúdo
na realidade mais próxima,
galopando pelas planícies
como o vento que traz as chuvas necessárias às colheitas,
à sua frente os olhos do Outono,
atrás de si o Destino a correr
como um louco segurando uma navalha.

quinta-feira

Serpieri três


thursday, early morning

The pain of seeing the presumable steak of game flowing through your fingers
and not being able to grasp it
well... that's the most revolutionizing feeleing there is
all together...

quarta-feira

Serpieri dois


terça-feira

o Grande Touro Negro

O solitário é aquele que, apesar do contato cotidiano com outros em ambientes públicos, em geral pela sua condição urbana, e da sua (falta de) habilidade em se relacionar com eles, chega em casa à noite na companhia de cães e luas. A sensação de crescente vazio experimentada pelo solitário soa mais como uma expressão do contínuo preenchimento da objetividade pela sua única subjetividade individual. Tudo se torna parte de si mesmo, sem um contraponto objetivo, sem muito questionamento vindo de fora. A contraparte que se revela enquanto conflito, nesse caso, é uma expressão objetivada de um conflito da própria subjetividade. A disposição das coisas num dia de chuva não é a mesma daquela dum dia ensolarado. Sol e chuva, sem uma oposição vinda de uma outra subjetividade capaz de comunicabilidade, tornam-se, com o tempo, estados de humor do sujeito solitário. São assim internalizados e, consequentemente, subjetivados. Deixam de pertencer ao mundo exterior -- do qual, por um lado, nunca fizeram parte de fato, pois nada temos senão a representação em nossas mentes daquilo que interpretamos ser o sol e a chuva, temos sempre um olho que vê um sol, nunca o sol mesmo, que não pode ser apreendido fora de uma sensação. Experimenta-se, então, uma ampliação da percepção da subjetividade no mundo.

Esse estado específico da percepção, sem a intervenção de um outro indivíduo real, é particulamente revelador: mostra o quão o mundo é, com efeito, um mundo interno, existente enquanto representação, cujo pilar é o sujeito que conhece. Surge então uma outra dimensão do conhecimento: o mundo é, nesta nova dimensão, o que se me apresenta. E eu o vejo em minha mente, como manifestação de minha mente. Ora, minha mente faz parte do que sou. Logo, sou o que vejo -- e, por que não, vejo o que sou. Assim, por esse ângulo, o solitário que contempla a vista de sua janela -- e é inteiro tomado por tal vista -- tem as fronteiras de seu ser borradas, os limites entre o que é janela e o que é solitário deixam de ser claros, pois um torna-se o sustentáculo do outro, ou melhor, um revela-se ser o sustentáculo do outro. Essa dissolução do sujeito no mundo é percebida como um devanescer da individualidade. Pois não é você ou eu olhando esta ou aquela janela, mas a junção do contemplador e do comtemplado num único fluxo existencial, do qual é, em certa medida, impossível discernir limites ontológicos. O desvanecer da individualidade pode ser interpretado como o fim da ilusão de que nós somos diferentes das coisas. O fim dessa ilusão é representado mais radicalmente pela morte do indivíduo. Logo, morte e desvanecer contemplativo são não apenas análogos, mas momentos distintos do mesmo processo, com a diferença fundamental de que o desvanecer-se é capaz de produzir conhecimento estético do mundo enquanto contemplador de si mesmo, mas a morte é o Desconhecimento ele-mesmo.

Saber que, por um lado da coisa, o mundo e nós são apenas dois pontos de vista de um mesmo fluxo e que, por outro, o sujeito que conhece é a coluna que sustenta os céus -- esse é um conhecimento do poder. Pois o fim da ilusão-magna de que nós somos dotados de uma substância distinta daquilo que nos cerca -- fim cuja forma definitiva é a morte do indivíduo -- leva necessariamente ao fim da ilusão-acessória de que alguma coisa pode preceder ontologicamente alguma outra. Isso imediatamente põe todos os seres no mesmo patamar existencial, pois todos passam a fazer parte do mundo na mesma medida em que o reproduzem em sua totalidade. Humanos, gatos, macieiras, fitoplanctos, vírus, cristais, plasma estelar. Matéria escura. Quarks, léptons, bósons. Gravidade, eletro-magnetismo. Sociedades e culturas. Grandes amores.

Voltando à solidão, para concluir. Depois de uma rápida pesquisa pessoal em indivíduos de grandes cidades, quanto aos que não suportam bem a solidão, a maioria das respostas é clara. A solidão os leva à contemplação do mundo. O homem moderno morre de medo da contemplação do mundo, pois ela o minimiza, o rebaixa ao mesmo nível do objeto contemplado. "Rebaixa", como se isso fosse possível. O homem percebe sua pequenez no vasto universo fluido. Sente-se perdido, pois as instituições religiosas que sobrevivem no mundo moderno estão todas absolutamente falidas do ponto de vista da capacidade de estabelecer uma cosmogonia positiva, uma cosmovisão profunda e acalentadora. Sobrevém o inevitável abismo similar à morte que é o desvanescimento contemplativo. Isso lhe é insuportável. É-lhe também insuportável a degustação da seguinte verdade: o mundo é minha representação. Então criou-se um descomunal aparato de distração, uma vez que a solidão não pode ser suplantada, que sequestra toda e qualquer capacidade cerebral humana de ver algo, sentir algo. No lugar dessa capacidade é colocada uma massagem hipnótica que mistura uma sexualidade difusa e histérica, uma necessidade de se afirmar em termos materiais como falso sucedâneo à falta de conteúdo espiritual e uma substituição da comunicabilidade humana por códigos aleatórios, cifrados, truncados. O que, convenientemente, faz do homem moderno um ser dócil, inconsciente de seu poder, facilmente amordaçável.

A contemplação solitária e ociosa não pode ser usurpada pelos defensores do medo. Há que ter coragem para ter conhecimento e doravante poder. Olhar nos olhos do grande touro negro que vem quando as máquinas são desligadas é fundamental para a conexão do homem com aquilo que ele é, ou seja, o mundo mesmo, com todos seus espaços vazios, com toda a abundância de vida que cada célula traz.

...tame the light...
...tame the light in the mirror...

segunda-feira

reLovolution

A quê nos vemos reduzidos nas nossas vidas ordinárias, cotidianas, normais. Nossa liberdade de movimento é restrita por um transporte público humilhante, pelo qual pagamos realmente caro, sem falar nos impostos que o governo nos rouba, e que não é capaz de prover um mínimo de dignidade -- e veja que não estou falando em conforto --, com seres humanos socados em vagões como se fossem gado; ou, para os que têm um carro, pela inoperância da malha viária urbana. Então vem o trabalho, incapaz de prover satisfação pessoal, permeado por ideologias vazias tais como a necessidade absoluta de ser melhor que o seu concorrente, para ganhar mais dinheiro, explorar mais funcionários, para ganhar mais dinheiro, deliberadamente mentir para seus clientes, pois você precisa ganhar mais dinheiro, produzir necessidades onde antes havia apenas o sagrado ócio, através de bombardeamento publicitário, imbecilizar adultos, adolescentes e crianças espalhando a ignorância como um vírus, para ganhar mais e mais dinheiro. Então você para para conversar com as pessoas e elas acreditam num deus invisível, morto, terrivelmente ciumento e dominador, que observa as ações do mundo atentamente para vingar-se depois. Essas pessoas acham que estão lhe fazendo um favor ao tentar lhe converter ou persuadir da existência dessa força bizarra, mas ficam extremamente ofendidas se você oferece um ponto de vista sincero e sem camisinhas semânticas. Dizem que você é louco ou que vai para o inferno ou, mais comumente, jogam uma praga qualquer, como dizer que você vai morrer de fome -- o que eu já ouvi pelo menos umas quatrocentas e cinquenta e oito vezes. Então há a sexualidade ordinária, de rua. As mulheres com roupas altamente sensuais, principalmente nos dias de calor, provocantes mesmo. Você olha para elas com aquele misto de curiosidade e apetite, mas para sua surpresa, apesar de elas se vestirem como umas camélias, a revelação de sua disponibilidade sexual para com elas lhes é ofensiva.

Lhes é ofensiva pois há séculos lhes é enfiado na cabeça que o prazer é ruim, traz a perdição e a ruína não só nesta vida, mas para toda a eternidade; e o sofrimento é bom, pois purifica, renova e liberta. Assim como o trabalho, que nunca deixou de ser uma fonte de sofrimento na humanidade, liberta. Mas isso ressoa mais profundo em alemão: Arbeit macht frei. Essa era a inscrição nos portões dos campos de extermínio nazistas. Que receberam apoio não só ideológico como material da igreja católica. Igreja cujo líder, Ratzinger, não só fez parte da juventude hitlerista e abrigou acusados de nazismo quando o terceiro reich caiu, como acobertou acusados de estupro contra crianças na época que era cardeal, ou bispo, ou acerbispo, ou qualquer coisa que o valha. Por outro lado, os estadunidenses precisam vender suas bugingangas inúteis e suas ideias pífias para todo o mundo, pois eles crêem ser os representantes mundiais da liberdade, apesar de terem iniciado inúmeras guerras e financiado um tanto de outras com o objetivo muito claro de exterminar, pilhar e impor. E os portadores de sua cosmogonia monossilábica vêm atingindo relativo sucesso por essas bandas de cá, abaixo do equador, em aniquilar todo traço de cultura autêntica, de pensamento autônomo, de economia alternativa de subsistência. Culturas, pensamentos e economias que são perseguidas não só por aqueles portadores de cosmogonias monossilábicas, mas por todos os seus advogados. Advogados que recomendam o trabalho, a dor e o sofrimento contra aquela sensação perigosíssima que é o prazer.

Perigosa pois mostra, numa concentração e num nível tão altamente invioláveis, o poder individual, a liberdade que o amor proporciona, a capacidade revolucionária de se sentir vivo, humano, de não aceitar o que nos reduz, de não ser tolhido em nossas escolhas pela imposição violenta da imbecilidade e da cegueira enquanto verdades metauniversais. Esse poder vem quando o chamamos honestamente, sem o ranço da culpa, de peito aberto, olhando nos olhos de um outro autêntico, do Grande Outro, do objeto A. É aí que moldamos nosso lar. E é para aí que vamos quando o desgosto para com a exacerbação da mediocridade e a apologia da escravatura nos acerta em plena segunda-feira, após um feriado repleto de méis, luares, sons e olhares.

Não fiquemos calados.

quinta-feira

Serpieri um