terça-feira

uma drágea angular e fibrosa

Raro é o prazer de se descobrir um novo autor com o qual descobre-se a si mesmo. Nestas férias deparei-me com um que há tempos desejava experimentar. Como a um novo drinque, uma mistura cujo sabor ainda não era capaz de conceber. Segue sem desnecessários comentários o excerto de "Diário de um ladrão", texto autobiográfico de Jean Genet:


"(...) Outras vezes, eu me recomendava não a Deus mas àquela náusea que me faziam experimentar os ofícios religiosos, a sombra das capelas em que vigiam virgens e velas vestidas para o baile, o canto dos mortos ou o simples apagador das velas. Anoto essa curiosa impressão pois tinha uma certa analogia com a que, durante toda a vida, hei de conhecer em circunstâncias muito afastadas do que acabo de descrever. O Exército, as instalações da polícia e os seus hóspedes, as prisões, um apartamento assaltado, a alma da floresta, a alma de um rio (a ameaça - repreensão ou congratulação pela sua presença de noite) e, cada vez mais, cada mesma sensação de nojo e temor que me faz pensar que a idéia de Deus eu a alimento nas minhas tripas."

sexta-feira

para John Cage


A forma do nada

A forma do nada é curva
de deslizar entre os dedos,
esguia como sonhos turvos
esquecidos ao despertar.

Se espreita-a por um momento,
a outro a consciência enfastia-se
e, longe de ter fim, a infinitesimal noite
refrata-se em cristais azeviches:

uma presença
ausente
de cor
no chuvisco intermitente

da solidão advinda do convívio,
do silêncio ruidoso dos dias,
da satisfação no vício,
do vício virtuoso de escrutinar
ao sol do meio dia
o negrume
da vigília;

couraça

eis o nada

um lobo na esquina
uma lembrança pré-uterina
uma forma volitiva

;

gramaticalmente errônea anti-substância do ser,
objeto do não-viver,
o conhecimento da destruição
do conhecimento,

o pesar ao pensar,
o escrever ao fugir,
a fuga ao amar,
a entrega à renúncia,
a vida que finda
por si só

por si



s

ó

por

s

i

.

quinta-feira

abertura

Exteriorizar uma imagem sonora é dar-lhe alguma realidade mais definitiva que aquela área de realidade vivida não no tempo mais ou menos linear das ações irrevogáveis, mas na constante atualidade de uma melodia que pulsa e ondula ou de blocos harmônicos superpostos em sutil desequilíbrio? Mmm... Percebo que escrevi realidade. Mas que palavrinha mais vazia de conteúdo. Tudo pode preenchê-la assim como nada a esgota. Complica-se ainda mais se a questão é a definitividade de qualquer realidade. Tudo é fugaz. Ou melhor, tudo flui. O registro escrito sobre papel seria mais longevo. Mas, além da minha consciência pesada ao pensar em árvores, seus habitantes e todo o intricado sistema de relações orgânicas ameaçado com o meu esporádico afã pela durabilidade, alimento uma vaga e rarefeita ilusão de que há uma espécie de comunidade ou, como no obscuro conto do Borges, uma seita, sabe-se lá, talvez mesmo uma força imaterial, invisível, uma radiação mais lenta, fruto do meu contato prematuro com a ficção (como é mesmo o nome do autor que nos alerta para as perniciosas influências da arte na conduta mental dos indivíduos?), capaz de dar as mais diversas interpretações a estes fragmentos que, por si, teriam talvez menos leitores no papel. Contudo, estes poucos leitores - digo-o porque os conheço - são como as poucas estrelas de uma constelação austral nas quais leio a minha posição relativa em um globo inteiramente coberto por profundos e espessos oceanos...
Estes fragmentos são dedicados a todos que os lerem, especialmente àqueles que estão sempre ao meu lado. Sobretudo você, Vi.