terça-feira
koan
Duas pessoas observam uma bandeira tremulando. Uma delas fala "a bandeira se move". A outra responde "não, é o vento que se move". Uma terceira pessoa que passava intervém "nem a bandeira, nem o vento -- a mente se move".
memória
O cão-sem-plumas passava por ali, quieto. Esquinas de subterfúgios e malandragens, tudo muito pitoresco. Repasseio, mas é estranho. As ruas não se conectam como deveriam. Há um eco no lugar delas mesmas. O calor de sempre, a verticalidade estranha e incompleta, as árvores -- uma imagem parcial, refratada. Lembrar e reconstruir. As coisas jamais vistas são melhor definidas na imaginação do que as rememoradas. Quando lembro, vem uma névoa.
"I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain."
segunda-feira
o inchaço
O inchaço das horas expande seu domínio. Estufa as veias dos minutos e faz o mundo parecer preenchido com salitre. Cada gesto prolonga uma intenção oculta, cada vez mais longe de desvelar-se. Os segundos afastam-se uns dos outros, estendendo os braços para alcançar os tique-taques vizinhos, subseqüentes ou pretéritos. Os cigarros viram cinzas e os pêssegos ameixas secas no porvir das esperanças postergadas. Anda o ponteiro e seca o copo. Toca o grande Pã sua flauta zéfira. Corre Mercúrio no firmamento. Mantém o mundo a crosta longínqua de ilusão e fantasia sobre a qual erigem-se os desertos mais radiantes de escarpas oblíquas. Eu sou uma pedra imortal que jamais viveu. O tempo é meu querer. Minha estória eu a escrevo na superfície do rio que corto. Em mim o potencial se converte em memória. Fora isso é o esquecimento. É como olhar para o mar quando está sereno; e é como olhar para o mar quando está atormentado. Não é a mesma coisa. É a mesma coisa. O que num momento parece múltiplo a outro instante é despido de multiplicidade. O fogo é o próprio graveto.
quinta-feira
Um pouco de política não faz mal a ninguém
Tenho evitado, neste último ano, publicar textos políticos aqui no blog -- pois sempre havia pensado que isso iria contra a proposta da coisa, enfim. Sempre há uma primeira vez. Pode ser um pouco dolorido no começo abrir espaço entre os sonhos e poemas macios para uma dura crítica política, mas tenho fé que essa dor se converterá em prazer. Então vamos lá, sem muitas preliminares umidificantes, direto ao ponto.
Hoje foi anunciada a decisão do prefeito da cidade de São Paulo de extinguir uma das cinco refeições diárias nas creches da prefeitura. A íntegra pode ser lida aqui no site da Folha de São Paulo. Isso afeta aproximadamente cento e vinte mil crianças -- a esmagadora maioria vinda de famílias carentes, mas essa parte da história todos nós conhecemos. Chegou-se ao ponto de ser elaborado um questionário aos pais dos pequerruchos para saber se eles prefeririam que seus filhos ficassem sem café da manhã ou sem jantar.
Essa medida segue os cortes na verba destinada à limpeza urbana. Tudo isso com o objetivo óbvio de gerar receita para o financiamento da campanha eleitoral do ano que vem.
Seguindo a lógica do Estado, teremos um futuro coberto de lixo, com raquíticos de espírito mal-formado capazes de identificar todas as etapas do processo de putrificação dos alimentos. Ao mesmo tempo, será construída uma gigantesca bolha no centro da cidade, capaz de abrigar os partidários do establishment, em luxuosas quitinetes de quarenta e cinco metros quadrados, com fácil acesso ao metrô e aos estádios participantes da Copa. Refiro-me ao projeto Nova Luz, que representa o modelo "patada" típico das intervenções públicas neste país desde Cabral. Trata-se da desapropriação e reconstrução da área da Luz, no centro de São Paulo, que mais se parece com uma "excomungação coletiva dos impuros de corpo e alma que, com suas presenças nefastas, corrompem a harmonia crepuscular da pólis". Reintegração zero. Só expulsão e exclusão. Problema bom é problema invisível.
Todas as ações do Estado vão na direção da manutenção dos privilégios sócio-econômico-culturais dos cidadãos cujos interesses estão em harmonia com o próprio Estado. O Estado tem um fim em si mesmo. É um corpo coletivo estável, violento e corrupto. Sua gênese está na ânsia pelo controle, na desconfiança em relação à liberdade, no desprezo às qualidades humanas mais femininas como a relação coletiva com a terra e a prevalência da carne sobre o metal. O Estado, assim como o modelo de desenvolvimento que ele defende, representa e impõe, faz parte de uma visão de mundo responsável tanto pela tecno-ciência quanto pela decadência geral do espírito, do corpo, das relações. Essa visão de mundo remonta aos primórdios do modelo civilizatório europeu -- que pode-se dizer é o modelo vencedor. Quanto sangue custou essa vitória? Quanto esforço custa a manutenção e reprodução em escala global desse modelo? Vivemos o sonho de Ford e o pesadelo de Orwell. Somos homéricos e maquiavélicos.
Hoje foi anunciada a decisão do prefeito da cidade de São Paulo de extinguir uma das cinco refeições diárias nas creches da prefeitura. A íntegra pode ser lida aqui no site da Folha de São Paulo. Isso afeta aproximadamente cento e vinte mil crianças -- a esmagadora maioria vinda de famílias carentes, mas essa parte da história todos nós conhecemos. Chegou-se ao ponto de ser elaborado um questionário aos pais dos pequerruchos para saber se eles prefeririam que seus filhos ficassem sem café da manhã ou sem jantar.
Essa medida segue os cortes na verba destinada à limpeza urbana. Tudo isso com o objetivo óbvio de gerar receita para o financiamento da campanha eleitoral do ano que vem.
Seguindo a lógica do Estado, teremos um futuro coberto de lixo, com raquíticos de espírito mal-formado capazes de identificar todas as etapas do processo de putrificação dos alimentos. Ao mesmo tempo, será construída uma gigantesca bolha no centro da cidade, capaz de abrigar os partidários do establishment, em luxuosas quitinetes de quarenta e cinco metros quadrados, com fácil acesso ao metrô e aos estádios participantes da Copa. Refiro-me ao projeto Nova Luz, que representa o modelo "patada" típico das intervenções públicas neste país desde Cabral. Trata-se da desapropriação e reconstrução da área da Luz, no centro de São Paulo, que mais se parece com uma "excomungação coletiva dos impuros de corpo e alma que, com suas presenças nefastas, corrompem a harmonia crepuscular da pólis". Reintegração zero. Só expulsão e exclusão. Problema bom é problema invisível.
Todas as ações do Estado vão na direção da manutenção dos privilégios sócio-econômico-culturais dos cidadãos cujos interesses estão em harmonia com o próprio Estado. O Estado tem um fim em si mesmo. É um corpo coletivo estável, violento e corrupto. Sua gênese está na ânsia pelo controle, na desconfiança em relação à liberdade, no desprezo às qualidades humanas mais femininas como a relação coletiva com a terra e a prevalência da carne sobre o metal. O Estado, assim como o modelo de desenvolvimento que ele defende, representa e impõe, faz parte de uma visão de mundo responsável tanto pela tecno-ciência quanto pela decadência geral do espírito, do corpo, das relações. Essa visão de mundo remonta aos primórdios do modelo civilizatório europeu -- que pode-se dizer é o modelo vencedor. Quanto sangue custou essa vitória? Quanto esforço custa a manutenção e reprodução em escala global desse modelo? Vivemos o sonho de Ford e o pesadelo de Orwell. Somos homéricos e maquiavélicos.
terça-feira
segunda-feira
sábado
sonho 46x9-B
Um palácio de mármore no coração da Cidade. O piso é coberto por uma lâmina de água com não mais de meio centímetro de profundidade. Uma luz fantasmagórica e quente pulsa de nenhuma fonte aparente. O interior é ornamentado num estilo meio barroco meio tupi e a ausência de mobília é total. Há um cheiro campestre muito vago. Caminho por um salão branco em direção a um corredor menos iluminado, envolto por um umbral dourado. Pressinto que lá, do outro lado, pulsa a escuridão morna de uma floresta. Uma força simpática, irresistível, morna e muito antiga faz com que eu adentre o corredor. Penso ouvir o canto das Sirenes. Lá, na mata, minha presença é requisitada...
terça-feira
o tempo do Lobo
Virá a época em que todas as coberturas naturais serão removidas. A terra será exposta e seus filhos se integrarão a ela de maneira total. Os advogados do establishment perderão suas vozes roucas e todas as gravatas serão inúteis. Virão os irmãos e camaradas com faces encarvoadas. Rios de lodo correrão livres pelas escarpas nuas e todos ficarão com o cheiro do lodo, com a cor do lodo. Descomunais samambaias se dependurarão das ruínas dos monumentos e crianças e animais serão libertos da servidão. Cães sem pelo beberão da água esverdeada que brotará das fontes da liberdade, todas cobertas pelo lodo esverdeado da liberdade. Grandes fogueiras levarão luz aos quatros cantos da terra, e todos dançarão o retorno à pedra envoltos em trapos de poliéster e microfibra. Virão as primeiras flores, pois jamais terá havido flores.
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