terça-feira

Drummond fala

Segue um trecho do poema "Era Manhã de Setembro":

"
(...)

O capítulo do ser
o mistério de existir
o desencontro de amar

eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia

radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa

para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa

e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo

(...)

"

sexta-feira

vontade

(...)

Eu gostaria de ser perpassado pelo seu segredo e diluir-me na praia alva do teu seio. Me faz profundo, me faz teu.

eu, rio

Nasci em numa região altiva, do seio de rochas vulcânicas. Discreto, emitindo um chiado mínimo, formei poças cristalinas. O suor das montanhas foi meu alimento, as lágrimas do céu minha água e a vida vegetal e animal minhas contrapartes espirituais. Com o tempo tornei-me caudaloso e profundo, correndo mais rápido, com maiores aspirações à perenidade ao mesmo tempo em que mais turbulento e instável. Carreguei infindáveis torrentes de sedimentos em meu leito, não mais permitindo que heras fixassem-se às margens. Poluí-me e renovei-me. Antevejo meu irrevogável destino e, ao fazer isso, desejo-o em segredo: ficarei raso, ilhas rasgarão minha superfície, sentirei um gosto salgado na boca e abrirei um delta para morrer no oceano, brutalmente diluído, arrastando todo um mundo para o fundo do silêncio.

maya II

Um dia ainda farei um longo compêndio em ordem alfabética de minhas ilusões, classificadas e comparadas, para ter a impressão de que as conheço tão bem que posso domá-las. Então tentarei emparedá-las junto às denunciadas pelos grandes livros, especialmente os que não julgo tão fruto da vaidade quanto da necessidade. A que conclusões chegaria? Provavelmente, que os conteúdos repetem-se nos homens, ou melhor, que os conteúdos manifestam-se através dos homens. Quando duas pessoas conversam, muito longe da impressão vaga de comunicação, há um aperto de mãos entre palavras, encaixes semânticos e lógicos que cordialmente cumprimentam-se na rua. As tentativas de tocar o outro, sobretudo as desesperadas, esbarram no Véu. Quão confortável é pensar que estamos em contato uns com os outros... E, no entanto, quem partilha desse falso conforto experimenta uma falsa suspensão momentânea da solidão. Raros são os momentos em que o Véu se abre. Neles não há palavra, não há lógica - pelo menos não aquela lógica que faz sentido. Eles são preenchidos por longos silêncios às vezes desassossegados, às vezes pacíficos. São quentes e úmidos como a floresta à noite, sua presença apenas discernível à nossa frente. São o hálito da vertigem; a percepção ora difusa ora aguda da consciência por trás dos olhos (claros ou escuros, olhos são negros).

quinta-feira

quero

Quero seu colo. Quero suas mãos doces no meu cabelo. Quero seu cheiro ao meu redor. Quero a realidade e a atualidade de ser envolvido pelo amor que emana dos seus olhos.

para Camus

Hoje eu vi a face do desespero. Um homem-sanduíche perambulando pelo centro anunciando vagas de sub-empregos. Magro, barbudo, velho. Perplexo e atordoado. Não há como vê-lo e não ser invadido por uma lucidez dilacerante.

domingo

antidualismo

Singular ser o homem. Pela memória molda o passado, pela esperança antecipa o futuro. Com que ânsia bebemos da jarra da esperança! E com que fanatismo agarramo-nos em nossas memórias mais obscuras e fantasmagóricas... O presente, nesse contexto, revela-se como a fugaz conversão da potência do vir-a-ser e todas suas decrescentes probabilidades em lembrança e hábito enevoando-se à medida que se distancia. Todo esse drama banal, cotidiano, semanal, policentenário desenrola-se apenas na nossa mente. Séculos, milênios de sucessão, de representação do tempo, de esquecimento. Os cães do Oblivion não possuem olhos, só bocas enormes com mil dentes, como vermes faraônicos, a constantemente rasgar e digerir as franjas da memória que se esvai contínua e certamente. Tais seres jamais sentem fome. São como guardiães de um mundo proibido, inacessível, impensável. Simbolicamente, são um dos limites da inteligibilidade do mundo. Por outro lado, há a vinda do futuro como irrevogável. A consciência do fim, ou seja, quando o universo em mim cessar de ser e dissolver-se, é fonte de uma tal angústia que só os humanos são capazes de sentir, sofrer e dar sentido. E, no entanto, apesar de nossas tentativas ora frias e pensadas, ora loucas e românticas, nossa capacidade de moldar o futuro é quase tanta quanto de moldar o passado. Isso já é bem grande. Mas ainda assim (valeu Maquiavel) as avalanches da fortuna continuam rompendo os diques da virtú, e a bruma da manhã continua envolvendo o barquinho a remo da consciência. Sobra o presente, o fugaz, vasto, eterno presente. Quanto menos palavras (gotas de outros tempos) precisamos para contemplá-lo, mais viva torna-se sua imagem. Pintá-lo em vermelho, amarelo, magenta, cobalto, grená, limão. Cessa a razão, cessa o discurso, a esperança e a memória. E então POU! CRASH! HURRAH! Malabarismo com bolas de basquete em corda bamba sobre cataratas do Iguaçu. Cachorro amordaçado com linguiça. Torrada com geléia amarrada em costas de gato em órbita.

quinta-feira

[sem título]


despertar I

Certas vezes o silêncio vem aliado a uma imensidão vazia vinda não sei de onde. Como se grandes espaços vagos ondulassem ao meu redor; mas ao abrir os olhos o espaço define-se como próximo e - não raro - opressivo. É um sentimento indefinido, de difícil caracterização. A iminência de obrigações cotidianas, o céu alvo, brilhante e estéril, essa amplificação dos ruídos que o silêncio traz, o claustro bem tolerado da metrópole, a solidão. Nesses momentos, internalizo o deserto e torno-me nômade, beduíno, caravana e miragem de mim. Como a aérea tartaruga marinha bicentenária e imensa dos meus sonhos flutuando na vastidão dégradé dos oceanos mais profundos.

saudades


Aqui chove e garoa há quarenta horas. Os dias, cinzas, parecem não-nascidos, ocultos sob muitas camadas de lençóis almofadados. O ruído da água é preguiçoso e melancólico quando ouvido através das janelas cerradas. O Arthur, numa conversa meio mineira, longínqua, me fala como toda a efetividade assenta-se sobre uma única coluna subjetiva; deito-o de lado, perto do copo vazio, e espero que a qualquer momento você abra a porta da frente, com uma malinha manca, de sobretudo bege. O cheiro dos cabelos lisos e negros, o sabor do pescoço convidativo, a faísca nos olhos, o corpo que chama... Noites em claro, dias em sombra. Com muito amor e saudades, do seu, Rafa.