segunda-feira

dois e setenta

Como nós somos escravos das coisas. Quarenta anos atrás, creme de cabelo era luxo. Temos que trabalhar, vender nossa alma, produzir algo que nos é alienígena às custas da nossa saúde física e mental. E para quê? Saudades de Rosa e sertão. Nostalgia da época -- que não vivi -- em que podíamos andar a terra, segurar as crinas dos cavalos, cultivar o solo, cochilar à sombra de grandes árvores que pareciam eternas. Toda a filosofia do mundo não erradicou a escravidão, apenas mudou-lhe o nome. Hoje a passagem de ônibus em São Paulo subiu para absurdos R$2,70. Não há como sair de casa com menos de seis reais no bolso. E aí vem aquela balela cósmica dos direitos humanos, do livre ir e vir, tal. Pura cascata. História para boi dormir. E mais impressionante: nenhum protesto na cidade. Pelo contrário, uma paz celestial. Uma aceitação canina.

Um dia esse reino acabará. Esta noite sonhei que estava em Roma, na época do Império. Era um banquete. Eu desmascarava todos e depois fugia num submarino amarelo. Então as colunas começaram a ruir. Todas as noites vou dormir com a leve esperança ansiosa de acordar no dia seguinte com o mato cobrindo todos os prédios, os carros abandonados na rua enferrujando lentamente, os animais livres e os crânios dos nossos algozes de outrora empilhados na porta da cidade.

incêndio em comunidade no Capão Redondo, 2009

Er

Tal qual uma cena de um videoclipe do Tool que um druida amigo meu me mostrou. Um passeio pelo lado de . Uma temporada. Visitei o Tártaro. Vi as pedras angulares e os platôs por onde os caçadores soltam seus falcões. O hálito do falcão é frio e úmido como um pântano. A força mais fundamental, essa libélula carnuda que habita o peito, se agita sobremodo, tentando escapar pelo nariz, pela boca, pelos olhos, chocando-se com o limite do corpo como uma abelha contra o vidro da janela diurna. Mas o corpo todo já é o Tártaro. Como é devastadora essa consciência, no momento em que ela vem. Lembra uma retroescavadeira.
No entanto, mesmo ainda mergulhado em estranho cenário, vejo vindo no ar uma rasa aurora. É mais um cheiro que uma visão -- o que a faz tanto mais certa, uma vez que o olfato raramente se engana --, um aroma distante de manjericão. Ou de café recém-coado. À essa imagem já a libélua carnuda se acalma um pouco. Aguarda a tempestade vermelha que vai pôr abaixo o Tártaro, os caçadores, os falcões, os pântanos, os platôs. Então guarda forças em pequenos copos que vai acumulando. Depois acorda e volta a debater-se.

Já é a nuvem púrpura que vem ou é só o meu querer que ela venha que me engana? É fácil descer o Averno. Os grilos tilintam na amurada como sempre o fizeram. O homem que entra no Ganges e o que sai não são o mesmo, este é mais forte que aquele. Mais novo, mais terrestre, mais celestial, mais real.

Feliz ano novo a tod@s. Como no mito de Er, o blogue Coluna de Ar volta do Hades. Durante muito tempo considerei a possibilidade de um bloguecídio definitivo, sem retorno. Foi um estímulo o reavivou, como uma massagem cardíaca. Quem é sabe. É de pequenos estímulos que se alimenta quem de rojões se empanturrou. São digestivos. Melhores licores, menores taças. Sabe como é. Muito obrigado a tod@s que contribuíram direta ou indiretamente para que bons ventos soprassem nesse ano difícil que se foi. Sintam-se abraçad@s e beijad@s!

Aproveito para anunciar uma pequena pausa nas postagens. Não sem um sorriso malicioso de quem volta do mundo dos mortos e anuncia que vai tirar um cochilo. O sono, esse estranho irmão da morte! Ou como o malandrim que trabalha um, descansa um dois, trabalha três, descansa um dois três quatro. Mas não é picaretagem não. Volto em mais ou menos um mês. Trarei fotos!
;)