quinta-feira

Um pouco de política não faz mal a ninguém

Tenho evitado, neste último ano, publicar textos políticos aqui no blog -- pois sempre havia pensado que isso iria contra a proposta da coisa, enfim. Sempre há uma primeira vez. Pode ser um pouco dolorido no começo abrir espaço entre os sonhos e poemas macios para uma dura crítica política, mas tenho fé que essa dor se converterá em prazer. Então vamos lá, sem muitas preliminares umidificantes, direto ao ponto.
Hoje foi anunciada a decisão do prefeito da cidade de São Paulo de extinguir uma das cinco refeições diárias nas creches da prefeitura. A íntegra pode ser lida aqui no site da Folha de São Paulo. Isso afeta aproximadamente cento e vinte mil crianças -- a esmagadora maioria vinda de famílias carentes, mas essa parte da história todos nós conhecemos. Chegou-se ao ponto de ser elaborado um questionário aos pais dos pequerruchos para saber se eles prefeririam que seus filhos ficassem sem café da manhã ou sem jantar.
Essa medida segue os cortes na verba destinada à limpeza urbana. Tudo isso com o objetivo óbvio de gerar receita para o financiamento da campanha eleitoral do ano que vem.
Seguindo a lógica do Estado, teremos um futuro coberto de lixo, com raquíticos de espírito mal-formado capazes de identificar todas as etapas do processo de putrificação dos alimentos. Ao mesmo tempo, será construída uma gigantesca bolha no centro da cidade, capaz de abrigar os partidários do establishment, em luxuosas quitinetes de quarenta e cinco metros quadrados, com fácil acesso ao metrô e aos estádios participantes da Copa. Refiro-me ao projeto Nova Luz, que representa o modelo "patada" típico das intervenções públicas neste país desde Cabral. Trata-se da desapropriação e reconstrução da área da Luz, no centro de São Paulo, que mais se parece com uma "excomungação coletiva dos impuros de corpo e alma que, com suas presenças nefastas, corrompem a harmonia crepuscular da pólis". Reintegração zero. Só expulsão e exclusão. Problema bom é problema invisível.

Todas as ações do Estado vão na direção da manutenção dos privilégios sócio-econômico-culturais dos cidadãos cujos interesses estão em harmonia com o próprio Estado. O Estado tem um fim em si mesmo. É um corpo coletivo estável, violento e corrupto. Sua gênese está na ânsia pelo controle, na desconfiança em relação à liberdade, no desprezo às qualidades humanas mais femininas como a relação coletiva com a terra e a prevalência da carne sobre o metal. O Estado, assim como o modelo de desenvolvimento que ele defende, representa e impõe, faz parte de uma visão de mundo responsável tanto pela tecno-ciência quanto pela decadência geral do espírito, do corpo, das relações. Essa visão de mundo remonta aos primórdios do modelo civilizatório europeu -- que pode-se dizer é o modelo vencedor. Quanto sangue custou essa vitória? Quanto esforço custa a manutenção e reprodução em escala global desse modelo? Vivemos o sonho de Ford e o pesadelo de Orwell. Somos homéricos e maquiavélicos.

Um comentário:

Sidney Ramos disse...

Colunas de fumaça erguidas em barricadas.
Depois de queimados, colunas de carros formam empilhados pelas mãos daquela massa descontrolada.
Beijos.