quinta-feira

nota de rodapé

Meio fútil, diga-se de passagem. Mas vem a calhar nesse momento de tempestades na baía do cais, com todos aqueles navios impedidos de zarpar, aguardando tempos melhores.

Foi feita uma lista (pela Forbes, estadunidense, obviamente -- eles são os campeões das listas fúteis) das pessoas mais poderosas da atualidade, segundo a quantidade de indivíduos sob sua influência, a quantidade de recursos à sua disposição, a amplitude e o uso ativo desse poder. A lista é bem democrática, abrindo espaço para políticos, empresários, terroristas, líderes religiosos, traficantes, apresentadores de tevê e outros mais. Faz pensar na natureza do poder hoje em dia. Alguns nomes de destaque e suas respectivas posições:

01. Barack Obama, presidente dos Estados Unidos.
02. Hu Jintao, presidente da China.
03. Vladimir Putin, premiê da Rússia.
04. Ben S. Bernanke, diretor do FED, Banco central dos EUA.
05. Sergey Brin e Larry Page, fundadores do Google.
10. William Gates 3º, fundador da Microsoft.
11. Papa Bento 16, líder espiritual católico.
19. Li Changchun, chefe de propaganda do Partido Comunista da China.
33. Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil.
37. Osama bin Laden, líder da rede terrorista Al Qaeda.
39. Tenzin Gyatso, dalai-lama, líder espiritual tibetano.
41. Joaquin Guzman, traficante colombiano do cartel Sinaloa.
45. Oprah Winfrey, apresentadora de TV nos EUA.
54. Wadah Khanfar, diretor-geral da rede de TV árabe Al Jazeera.
56. Nicolas Sarkozy, presidente da França.
57. Steve Jobs, fundador da Apple e da Pixar.
62. Blairo Maggi, governador do Mato Grosso.
63. Robert B. Zoellick, presidente do Banco Mundial.
67. Hugo Chávez, presidente da Venezuela.

terça-feira

homenagem

"Seria preciso esperar (...) para que os caminhos, tanto tempo separados, se cruzassem: o que tem acesso ao mundo físico pela vereda da comunicação, e aquele de que se sabe há pouco que, pela vereda da física, chega ao mundo da comunicação. O processo todo do conhecimento humano assume, assim, o caráter de um sistema fechado. É, portanto, permanecer ainda fiel à inspiração do pensamento selvagem, reconhecer que o espírito científico, sob sua forma mais moderna, terá contribuído, por um encontro que somente aquele pôde prever, para legitimar seus princípios e para restabelecê-lo nos seus direitos." [O PENSAMENTO SELVAGEM, 1961]
Claude Lévi-Strauss, 1908-2009

segunda-feira

novembro

Uma, duas, cinquenta tardes e manhãs de asfalto quebrado, dúzias de noites novembras. E o que consegui colecionar? Mariposas cor de veludo, espessas e gomosas. Os dias do cinza espedaçados por dentro. Vou me encolhendo no sol que se esconde até ser homogêneo nos sonhos, que me sonham violeta e opaco. Sem nuvens brancas. Como num clarão negativo, uma febre ao contrário me assalta com calma e me faz não dormir. A voz acabrunhada mal sai. Os gestos só se esboçam. As colunas do futuro uma a uma trincadas. Os trabalhadores há anos desaparecidos começam a voltar ao canteiro, apanham sem vontade os pedaços dos tijolos espalhados na bagunça da demolição e, lenta e precisamente, retomam a construção do muro alto que por fim vai isolar o castelo das planícies. Cuidam para que haja janelas estreitas o suficiente, de modo que a luz, filtrada, não incomode por demais. As pálpebras dão lugar a unhas mal-cortadas e a barba se transforma em plumas. Abelhas vem morar nos ouvidos -- seu mel escorrendo pelo canto da boca dentro da boca dentro da boca. Os trabalhadores planejam um fosso ao redor da última muralha, e resolvem povoá-lo com cinismo quando a hora for precisa. Por enquanto, mariposas bastam. De asas peludas, cor de veludo, espessas e gomosas.

quinta-feira

para Gil

A força é bruta e a fonte da força é neutra.

terça-feira

koan

Duas pessoas observam uma bandeira tremulando. Uma delas fala "a bandeira se move". A outra responde "não, é o vento que se move". Uma terceira pessoa que passava intervém "nem a bandeira, nem o vento -- a mente se move".

memória

O cão-sem-plumas passava por ali, quieto. Esquinas de subterfúgios e malandragens, tudo muito pitoresco. Repasseio, mas é estranho. As ruas não se conectam como deveriam. Há um eco no lugar delas mesmas. O calor de sempre, a verticalidade estranha e incompleta, as árvores -- uma imagem parcial, refratada. Lembrar e reconstruir. As coisas jamais vistas são melhor definidas na imaginação do que as rememoradas. Quando lembro, vem uma névoa.
"I watched C-beams glitter in the dark near the Tannhäuser gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain."

segunda-feira

o inchaço

O inchaço das horas expande seu domínio. Estufa as veias dos minutos e faz o mundo parecer preenchido com salitre. Cada gesto prolonga uma intenção oculta, cada vez mais longe de desvelar-se. Os segundos afastam-se uns dos outros, estendendo os braços para alcançar os tique-taques vizinhos, subseqüentes ou pretéritos. Os cigarros viram cinzas e os pêssegos ameixas secas no porvir das esperanças postergadas. Anda o ponteiro e seca o copo. Toca o grande Pã sua flauta zéfira. Corre Mercúrio no firmamento. Mantém o mundo a crosta longínqua de ilusão e fantasia sobre a qual erigem-se os desertos mais radiantes de escarpas oblíquas. Eu sou uma pedra imortal que jamais viveu. O tempo é meu querer. Minha estória eu a escrevo na superfície do rio que corto. Em mim o potencial se converte em memória. Fora isso é o esquecimento. É como olhar para o mar quando está sereno; e é como olhar para o mar quando está atormentado. Não é a mesma coisa. É a mesma coisa. O que num momento parece múltiplo a outro instante é despido de multiplicidade. O fogo é o próprio graveto.

quinta-feira

Um pouco de política não faz mal a ninguém

Tenho evitado, neste último ano, publicar textos políticos aqui no blog -- pois sempre havia pensado que isso iria contra a proposta da coisa, enfim. Sempre há uma primeira vez. Pode ser um pouco dolorido no começo abrir espaço entre os sonhos e poemas macios para uma dura crítica política, mas tenho fé que essa dor se converterá em prazer. Então vamos lá, sem muitas preliminares umidificantes, direto ao ponto.
Hoje foi anunciada a decisão do prefeito da cidade de São Paulo de extinguir uma das cinco refeições diárias nas creches da prefeitura. A íntegra pode ser lida aqui no site da Folha de São Paulo. Isso afeta aproximadamente cento e vinte mil crianças -- a esmagadora maioria vinda de famílias carentes, mas essa parte da história todos nós conhecemos. Chegou-se ao ponto de ser elaborado um questionário aos pais dos pequerruchos para saber se eles prefeririam que seus filhos ficassem sem café da manhã ou sem jantar.
Essa medida segue os cortes na verba destinada à limpeza urbana. Tudo isso com o objetivo óbvio de gerar receita para o financiamento da campanha eleitoral do ano que vem.
Seguindo a lógica do Estado, teremos um futuro coberto de lixo, com raquíticos de espírito mal-formado capazes de identificar todas as etapas do processo de putrificação dos alimentos. Ao mesmo tempo, será construída uma gigantesca bolha no centro da cidade, capaz de abrigar os partidários do establishment, em luxuosas quitinetes de quarenta e cinco metros quadrados, com fácil acesso ao metrô e aos estádios participantes da Copa. Refiro-me ao projeto Nova Luz, que representa o modelo "patada" típico das intervenções públicas neste país desde Cabral. Trata-se da desapropriação e reconstrução da área da Luz, no centro de São Paulo, que mais se parece com uma "excomungação coletiva dos impuros de corpo e alma que, com suas presenças nefastas, corrompem a harmonia crepuscular da pólis". Reintegração zero. Só expulsão e exclusão. Problema bom é problema invisível.

Todas as ações do Estado vão na direção da manutenção dos privilégios sócio-econômico-culturais dos cidadãos cujos interesses estão em harmonia com o próprio Estado. O Estado tem um fim em si mesmo. É um corpo coletivo estável, violento e corrupto. Sua gênese está na ânsia pelo controle, na desconfiança em relação à liberdade, no desprezo às qualidades humanas mais femininas como a relação coletiva com a terra e a prevalência da carne sobre o metal. O Estado, assim como o modelo de desenvolvimento que ele defende, representa e impõe, faz parte de uma visão de mundo responsável tanto pela tecno-ciência quanto pela decadência geral do espírito, do corpo, das relações. Essa visão de mundo remonta aos primórdios do modelo civilizatório europeu -- que pode-se dizer é o modelo vencedor. Quanto sangue custou essa vitória? Quanto esforço custa a manutenção e reprodução em escala global desse modelo? Vivemos o sonho de Ford e o pesadelo de Orwell. Somos homéricos e maquiavélicos.

terça-feira

janela I

a chuva cai sobre a chuva

segunda-feira

Feliz dia da Independência

Valeu Angeli.

sábado

sonho 46x9-B

Um palácio de mármore no coração da Cidade. O piso é coberto por uma lâmina de água com não mais de meio centímetro de profundidade. Uma luz fantasmagórica e quente pulsa de nenhuma fonte aparente. O interior é ornamentado num estilo meio barroco meio tupi e a ausência de mobília é total. Há um cheiro campestre muito vago. Caminho por um salão branco em direção a um corredor menos iluminado, envolto por um umbral dourado. Pressinto que lá, do outro lado, pulsa a escuridão morna de uma floresta. Uma força simpática, irresistível, morna e muito antiga faz com que eu adentre o corredor. Penso ouvir o canto das Sirenes. Lá, na mata, minha presença é requisitada...

terça-feira

o tempo do Lobo

Virá a época em que todas as coberturas naturais serão removidas. A terra será exposta e seus filhos se integrarão a ela de maneira total. Os advogados do establishment perderão suas vozes roucas e todas as gravatas serão inúteis. Virão os irmãos e camaradas com faces encarvoadas. Rios de lodo correrão livres pelas escarpas nuas e todos ficarão com o cheiro do lodo, com a cor do lodo. Descomunais samambaias se dependurarão das ruínas dos monumentos e crianças e animais serão libertos da servidão. Cães sem pelo beberão da água esverdeada que brotará das fontes da liberdade, todas cobertas pelo lodo esverdeado da liberdade. Grandes fogueiras levarão luz aos quatros cantos da terra, e todos dançarão o retorno à pedra envoltos em trapos de poliéster e microfibra. Virão as primeiras flores, pois jamais terá havido flores.

segunda-feira

despertar II

Para onde vão os belos dias não vividos? Seus elementos são reordenados e recalculados, redistribuídos democraticamente por toda a tribo de dias do porvir? A segunda-feira fica com o Sol. A terça com a preguiça. E assim vou diluindo o excesso de vida que me arrebenta as orelhas.

terça-feira

notas de outono revisitadas, parte 1 (para Godard)

Quis ser bravo, sair por ruas abertas e afogar-me em rios de flores solares. Devenir immortel -- et puis mourir.

notas de outono revisitadas, parte 2

Um pedaço de lugar se impôs naquele momento, interrompendo o fluxo das coisas do mundo. Lugar que ainda guardava a aura de indistinção própria dos sonhos; indiscernibilidade que desfolhava um certo cheiro de fantasia. Os pensamentos começaram a se agitar à medida que aquele objeto emergia da noite inconsciente -- como naufrágio que retorna do abismo coberto por cracas, algas e arraias. Era o mar que me chamava. O mar diurno e solar dos amores calmos e da saudade.

segunda-feira

para John Coltrane

sábado

in bloom

Nas ranhuras das pedras achar. Pelos detalhes recompor. Em um gesto redescobrir o amor. Num gole reconstituir os sabores e cheiros de uma viagem distante. A memória das coisas. Da pele. No calor do magma uma lembrança solar. Num instante de silêncio a harmonia em fuga de um olhar da mulher amada. Um membro perdido que regenera a totalidade do corpo. No mármore afrescos abstratos. Sob as unhas a dilacerante multiplicidade de formas evanescentes. Numa lua a adolescência e num sol a infância. À tarde dum dia qualquer, aos ventos minuanos, o sentimento oceânico de se viver num mundo ele mesmo vivo, tão mutável quanto em si, tão largo quanto raso. Estar aqui, nesta cidade sob esta lâmpada, estando em todas as cidades sob todas as lâmpadas que já se acenderam e se apagaram. A crista moicana duma onda que sempre volta a quebrar e volver, refluir para o centro do mar sem fim, plácido e vulcânico, azul e fatal, devaneio real de dias sem nome ou número, perdido numa vida sem décadas.

quarta-feira

minuano

O nevar da planície nua e selênica
espalha flocos de vidro branco
ao entornar as cores reais em cápsulas
que engulo ao ver o sol de inverno.

Despir-me de cidades frias e luminosas,
remover da pele o metal vivo
e receber no ritornelo da alma
o fluxo dos matizes rubros.

segunda-feira

devaneio racional

A consciência tenta constantemente infundar sua semente no inconsciente -- ao mesmo tempo em que este luta para desmembra-la, dilui-la. A consciência vale-se de um núcleo de auto-identidade e de produção de alteridade, o complexo do "eu", para tentar compreender a sombra e produzir o conhecimento. Essa produção é a engrenagem sutil, central e perene que jaz no centro das aspirações fáusticas da humanidade. O chamado complexo do "eu", no entanto, é um conjunto de relações auto-centradas de relativa fragilidade. Num plano microcósmico, deve enfrentar traumas, dissoluções e mistérios. Macrocosmicamente falando, no entanto, nota-se um inchaço da sua importância ao longo dos últimos séculos, e a ascensão da subjetividade ao trono do mundo marca nosso pensamento.