terça-feira

tirando a poeira

Topei com esse texto. Já se passaram três anos. O pseudônimo foi uma tentativa de criar um texto coletivo em que vários autores escrevessem sob a mesma máscara. O objetivo então era compor um autor, desconexo e complexo, com várias facetas contraditórias. Mas ninguém nunca continuou a brincadeira a não ser eu mesmo, o que me valeu uma impressão bem forte de que eu era incoerente. Bem, quem sabe agora vai.


"Roscharch" ou "Radiação de Fundo"
parte 1 de x

Por aqui, disse o homenzinho meio careca, guiando Eustáquio pelos corredores de paredes descascadas erepletas de infiltrações caleidoscópicas. Tlin tlin. Sentia-se um agradável cheiro de feijão e o homenzinho pensou na invisibilidade de todas as almas confinadas naquela construção mais antiga que ele próprio. Seria como os imensos cupinzeiros que costumava demolir – não sem antes contemplá-los longamente – quando era (tlin tlin tlin) criança pelos matos e capins de um idílico e saudoso interior. Sempre ouvira falar da metrópole; os imaginativos prédios deviam ser como cupinzeiros e os seus habitantes como cupins. Hoje ele virou um cupim. Tlin. Após virar à esquerda e subir dois lances de escadas sem nem sequer verificar a posição daquele incomum visitante que o seguia, deteve-se diante da porta do apartamento 37. Meteu a mão no bolso e pegou um musical molho de chaves que fez tlin tlin tlin tlin até que uma fosse escolhida. Eustáquio coçava as palmas das mãos. O cheiro de feijão começou a ficar denso depois que se misturou à anedótica fleuma do homenzinho. É aqui, doutor Shiitake. É Eustáquio; Eustáquio, entendeu? Sim, doutor Shiitake, fique à vontade, por favor, agora tenho que voltar para o meu serviço, mas qualquer coisa pode mandar me chamar. Dito isto deu meia volta e sumiu pelas escadas, levando consigo o onipresente cheiro de feijão e todos aqueles tlin tlin tlins. Seu lugar foi ocupado por um incisivo odor de velhice, mofo e morte. Eustáquio fechou a porta atrás de si comum gesto perplexo, contemplando diretamente a melancólica cena obscura que se prostrava perante toda sua vista. Instintivamente atravessou a atmosfera doentia da sala em direção às cortinas, abrindo-as como quem destrói teias de aranha em catacumbas egípcias e escancarou a janela com um gesto quase brusco. Uma claridade baça e cinzenta invadiu o interior estagnado e lentamente os miasmas infectos dos anos começaram a ceder lugar ao veneno que os metropolitanos apelidaram, talvez por ironia, talvez por inocência, de ar. Contornos se deixaram perceber. Um sofá. Uma mesa com quatro cadeiras. Um espelho oxidado. Quadros baratos. Papéis espalhados pelo chão segundo as rígidas fórmulas da teoria do caos. Por todos os lados, uma ausência que não poderia passar desapercebida. Bem, vamos ao trabalho. Mas por onde começar?

Um comentário:

Fernando Fitipaldi disse...

A sutiliza e o desenrolar da narrativa levam o leitor a imaginar cenários mil e a sentir a entrar em tão baça atmosfera formando uma espessa coluna de ar impregnada de mofo e ácaros explicitados pela fresta de luz entrante. Continue com a narrativa ela é rica de detalhes, formas e cheiros. Estou no aguardo...