segunda-feira

xis um

X. adentrou um mundo subterrâneo de metal e xenônio. A plataforma estava praticamente deserta, mas o ar era abafado. Poucas pessoas se utilizavam dos trens metropolitanos àquela hora. X. notou um olhar em sua direção, vindo do outro fim da plataforma. Um rapaz muito jovem, de traços delicados, metido numa estranha indumentária negra timidamente procurou os olhos de X. À perspectiva do outro, à percepção daquela consciência que o procurava com curiosidade por detrás duma face opaca, pálida até, X. vacilou. Por meio segundo o abismo que o isolava sucumbiu. Olhos, negros; por detrás deles a vastidão de sonhos, vales, mares, quartos, lençóis, fraquezas voluntárias de uma alma real e desconhecida. O rugir lancinante dos freios férreos do trem que chegava fez X. baixar os olhos. Adentrou o vagão. Nem todos os assentos estavam tomados. Os passageiros de feições vagas aparentavam estar em transe hipnótico, contemplando o ar às suas frentes como a um cristal magnífico, invisível e entediante.

O som produzido pelo deslocamento do trem através do infindável túnel escuro e claustrofóbico lembrava uma serra elétrica, dilatada no tempo, recortando cerâmica.

Exatamente à frente de X., num espaço reservado para anúncios, havia um cartaz de uma exposição de quadros holandeses. No centro do cartaz, uma reprodução fotográfica de uma pintura assaltou o olhar de X. Via-se uma moça, robusta, saudável, derramando leite numa tigela. Ela vestia uma camisa amarela, grossa, cujas mangas foram dobradas, deixando os antebraços nus. Na cabeça portava um chapéu que era mais como um pedaço de pano amarrado, identificando-a como uma criada. A barra de sua saia azul estava presa à cintura de modo que não se sujasse com o seu andar por dentro da casa, cuidando para que as coisas continuassem como estavam. A reprodução mostrava-a dentro de uma cozinha rústica, simplória. Uma mesa com broas de pão, uma cesta, panos de cozinha e uma jarra abrigava a tigela onde a moça deitava leite duma ânfora de terracota. À esquerda, no alto, uma janela exterior iluminava a cena de maneira fria e digna. A luz caía intensamente sobre a mesa, a moça e a parede nua atrás dela, criando sombras densas em todas as outras partes da reprodução. Uma cesta de vime e um bule de cobre dependuravam-se da parede em penumbra perto da janela. Uma fração mínima de vidro estava quebrada, permitindo a direta iluminação de uma lasca de madeira. Um prego na parede atrás da moça projetava uma delicada sombra cônica. A luz branca de um dia nublado refletia-se em todos os objetos da cena. As feições da moça eram altivas, profundamente concentradas na simples tarefa de por leite numa tigela. Estaria ela com os pensamentos na imensidão, no amor? Ou todo seu temperamento voltava-se para aquela ação tão quotidiana? De uma maneira ou de outra, ela mostrava-se completamente alheia ao espetáculo que a luz, os objetos e ela mesma proporcionavam ao contemplador da reprodução. Sua indiferença à majestosidade da cena a elevava a um patamar divino, fazendo-a ela própria majestosa. O mundo explodia em reflexos belíssimos e mostrava sua natureza sólida, silenciosa e eterna numa cozinha holandesa; sem alterar-se ela enchia uma tigela de leite através dos séculos.

Uma voz metálica vinda do alto anunciou algo, X. levantou-se e, quando as portas foram abertas, lançou-se a passos rápidos para fora.

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