terça-feira

o Grande Touro Negro

O solitário é aquele que, apesar do contato cotidiano com outros em ambientes públicos, em geral pela sua condição urbana, e da sua (falta de) habilidade em se relacionar com eles, chega em casa à noite na companhia de cães e luas. A sensação de crescente vazio experimentada pelo solitário soa mais como uma expressão do contínuo preenchimento da objetividade pela sua única subjetividade individual. Tudo se torna parte de si mesmo, sem um contraponto objetivo, sem muito questionamento vindo de fora. A contraparte que se revela enquanto conflito, nesse caso, é uma expressão objetivada de um conflito da própria subjetividade. A disposição das coisas num dia de chuva não é a mesma daquela dum dia ensolarado. Sol e chuva, sem uma oposição vinda de uma outra subjetividade capaz de comunicabilidade, tornam-se, com o tempo, estados de humor do sujeito solitário. São assim internalizados e, consequentemente, subjetivados. Deixam de pertencer ao mundo exterior -- do qual, por um lado, nunca fizeram parte de fato, pois nada temos senão a representação em nossas mentes daquilo que interpretamos ser o sol e a chuva, temos sempre um olho que vê um sol, nunca o sol mesmo, que não pode ser apreendido fora de uma sensação. Experimenta-se, então, uma ampliação da percepção da subjetividade no mundo.

Esse estado específico da percepção, sem a intervenção de um outro indivíduo real, é particulamente revelador: mostra o quão o mundo é, com efeito, um mundo interno, existente enquanto representação, cujo pilar é o sujeito que conhece. Surge então uma outra dimensão do conhecimento: o mundo é, nesta nova dimensão, o que se me apresenta. E eu o vejo em minha mente, como manifestação de minha mente. Ora, minha mente faz parte do que sou. Logo, sou o que vejo -- e, por que não, vejo o que sou. Assim, por esse ângulo, o solitário que contempla a vista de sua janela -- e é inteiro tomado por tal vista -- tem as fronteiras de seu ser borradas, os limites entre o que é janela e o que é solitário deixam de ser claros, pois um torna-se o sustentáculo do outro, ou melhor, um revela-se ser o sustentáculo do outro. Essa dissolução do sujeito no mundo é percebida como um devanescer da individualidade. Pois não é você ou eu olhando esta ou aquela janela, mas a junção do contemplador e do comtemplado num único fluxo existencial, do qual é, em certa medida, impossível discernir limites ontológicos. O desvanecer da individualidade pode ser interpretado como o fim da ilusão de que nós somos diferentes das coisas. O fim dessa ilusão é representado mais radicalmente pela morte do indivíduo. Logo, morte e desvanecer contemplativo são não apenas análogos, mas momentos distintos do mesmo processo, com a diferença fundamental de que o desvanecer-se é capaz de produzir conhecimento estético do mundo enquanto contemplador de si mesmo, mas a morte é o Desconhecimento ele-mesmo.

Saber que, por um lado da coisa, o mundo e nós são apenas dois pontos de vista de um mesmo fluxo e que, por outro, o sujeito que conhece é a coluna que sustenta os céus -- esse é um conhecimento do poder. Pois o fim da ilusão-magna de que nós somos dotados de uma substância distinta daquilo que nos cerca -- fim cuja forma definitiva é a morte do indivíduo -- leva necessariamente ao fim da ilusão-acessória de que alguma coisa pode preceder ontologicamente alguma outra. Isso imediatamente põe todos os seres no mesmo patamar existencial, pois todos passam a fazer parte do mundo na mesma medida em que o reproduzem em sua totalidade. Humanos, gatos, macieiras, fitoplanctos, vírus, cristais, plasma estelar. Matéria escura. Quarks, léptons, bósons. Gravidade, eletro-magnetismo. Sociedades e culturas. Grandes amores.

Voltando à solidão, para concluir. Depois de uma rápida pesquisa pessoal em indivíduos de grandes cidades, quanto aos que não suportam bem a solidão, a maioria das respostas é clara. A solidão os leva à contemplação do mundo. O homem moderno morre de medo da contemplação do mundo, pois ela o minimiza, o rebaixa ao mesmo nível do objeto contemplado. "Rebaixa", como se isso fosse possível. O homem percebe sua pequenez no vasto universo fluido. Sente-se perdido, pois as instituições religiosas que sobrevivem no mundo moderno estão todas absolutamente falidas do ponto de vista da capacidade de estabelecer uma cosmogonia positiva, uma cosmovisão profunda e acalentadora. Sobrevém o inevitável abismo similar à morte que é o desvanescimento contemplativo. Isso lhe é insuportável. É-lhe também insuportável a degustação da seguinte verdade: o mundo é minha representação. Então criou-se um descomunal aparato de distração, uma vez que a solidão não pode ser suplantada, que sequestra toda e qualquer capacidade cerebral humana de ver algo, sentir algo. No lugar dessa capacidade é colocada uma massagem hipnótica que mistura uma sexualidade difusa e histérica, uma necessidade de se afirmar em termos materiais como falso sucedâneo à falta de conteúdo espiritual e uma substituição da comunicabilidade humana por códigos aleatórios, cifrados, truncados. O que, convenientemente, faz do homem moderno um ser dócil, inconsciente de seu poder, facilmente amordaçável.

A contemplação solitária e ociosa não pode ser usurpada pelos defensores do medo. Há que ter coragem para ter conhecimento e doravante poder. Olhar nos olhos do grande touro negro que vem quando as máquinas são desligadas é fundamental para a conexão do homem com aquilo que ele é, ou seja, o mundo mesmo, com todos seus espaços vazios, com toda a abundância de vida que cada célula traz.

...tame the light...
...tame the light in the mirror...

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