quarta-feira

xis dois

Numa sonolenta tarde de maio, estirado sobre um desordenado catre, X. contemplava a cambiante paisagem através da única janela do aposento. Seu aspecto era lúgubre. Sobre o dorso nu, onde proliferava uma pelugem negra, um pesado volume de muitas páginas amareladas descansava aberto com a capa para cima. A lenta respiração de X. fazia com que o livro descrevesse uma monótona trajetória pendular vertical, quase regular. Uma meia-luz vinda de fora delineava formas tímidas pelo aposento. Ao lado do catre via-se um criado-mudo sobre o qual jaziam migalhas de pão e uma xícara velha, amarelada, em cuja boca agregara-se uma pontilhada camada negra a tudo resistente. Tubos metálicos de modesta bitola recortavam as paredes de cima a baixo, bifurcando-se em ângulos retos e morrendo em caixas com furos precisos onde a energia potencial aguardava em silêncio o momento de transformar-se em movimento. Daí em diante era o reino do negrume. De vez em quando algum reflexo inesperado inundava brevemente o aposento com uma luz fria, para então deixá-lo intocado.

Da janela vinham os ruídos contínuos, parecidos com chuva, do rolamento da borracha sobre o asfalto. Os carros passavam velozes pela avenida. X. observava suas trajetórias retilíneas e seus condutores solitários. O fluxo dos bólidos não era constante. A intervalos ritmados os discos coloridos dos semáforos exibiam cores diferentes, à visão das quais os condutores iniciavam uma progressiva desaceleração das máquinas até o repouso, para dali a poucos segundos – sob o efeito duma nova mudança cromática no semáforo – colocá-las mais uma vez em movimento, reiniciando um ciclo infinito, jamais se cansando ou perdendo o andamento. Árvores balançavam galhos majestosos preguiçosamente, as folhas múltiplas buscando um sol retirante. Às vezes um vento qualquer as agitava, e só.

Ademais, concreto e vidro. Ângulos rajados, linhas verticalíssimas, tudo salpicado de regulares janelas abertas ora para a escuridão interior ora para uma luz fria e gasosa. Monumentais caixas de fósforo silenciosas. Pulsando por dentro com angústias, solidões, orgasmos, mentiras, paixões violentas e suicídios. Fermentando vida. Aguardando o dilúvio. Zumbindo como abelhas invisíveis e cegas.

Um som doce e profundo espalhou-se pelo ar. Eram os sinos anunciando as horas. Havia por perto um templo dedicado a um deus há muito morto. Mesmo assim, alguns fiéis remanescentes ainda buscavam algum refúgio ali. O carrilhão, após dar seis sólidas badaladas, passou a uma profusão sonora repleta de tétrades maiores, menores e diminutas. Ondas de som carregaram as notas reverberantes até os tímpanos de X. Seu complexo organismo traduziu e retraduziu essa mensagem acústica para diversos códigos elétricos e impulsos químicos, ao cabo dos quais X. levantou as sobrancelhas. Seu rosto permaneceu imóvel como o de um lagarto, os olhos fixos no infinito de sua janela.

Súbito, ergueu-se e parcimoniosamente abriu as folhas de madeira do guarda-roupas. Tirou algumas peças empoeiradas da escuridão. Vestiu-as defronte o espelho, mas sem fitá-lo a não ser por um único instante, quando um olhar de esguelha quase pousou sobre os fundos olhos do homem jovem, magro e barbado do espelho.

2 comentários:

Fernando Fitipaldi disse...

Voltar a um antigo estilo funciona quase como uma confissão, um desabafo. Gostei da forma e senti saudades do verbo na primeira pessoa.

Vi disse...

Estava esperando a publicação deste aí. finalmente... então. a antiga questão das ações por trás do narrador-ambiente: x. pega um metrô, se não me engano? x. trabalha em algo que não gosta, detalhando o tão estranhos quanto ele no caminho? acho que era um sapato... (encare isso como uma moção encorajadora, por favor.)