Contra a monstruosidade, as lágrimas, o assassínio. Contra aqueles que, acreditando-se escolhidos por uma força cósmica --que na realidade não passa de uma auto-ilusão narciso-psicótica--, acham-se no direito de arrancar ao mundo a vida, a beleza e a esperança. Contra aquilo que nos faz longe, muito longe da paz, e que a faz parecer um sonho extra-terrestre, empoeirado e louco.
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W. Herzog
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sonho 6YH32-A
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reflexão pontual
Estamos acostumados à idéia de verdade: herança do Universo estático e perfeito de Aristóteles, cujo Sol não admite a presença de manchas. Imaginamos que é natural do ser humano o desejo pela estabilidade das cosmogonias. Tentar descartar a angústia de nunca saber é ilusão. É também ilusão acreditar saber. Idéias minimamente diferentes têm nos homens uma severa tendência à destruição mútua. Diferentes visões de mundo levam às guerras. Em todas as partes do Universo há “guerra”, matéria e antimatéria competem pelo ser. Átomos, moléculas, países. Logo, um possível destacamento qualitativo dos homens sobre o mundo não pode jamais ser levado a sério. Da mesma forma podem ser encarados os homens que mantiveram a mesma opinião sobre as coisas nos cursos de suas vidas. Diferentes níveis de energia da substância travam batalhas entre si, assim como diferentes idéias na mente de um poeta, ou como as múltiplas interpretações dos filósofos. Ou ainda como aquilo a que chamamos “vida” floresce e perece em raros desabrochares, num pulso auto-discordante.
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xis dois
Numa sonolenta tarde de maio, estirado sobre um desordenado catre, X. contemplava a cambiante paisagem através da única janela do aposento. Seu aspecto era lúgubre. Sobre o dorso nu, onde proliferava uma pelugem negra, um pesado volume de muitas páginas amareladas descansava aberto com a capa para cima. A lenta respiração de X. fazia com que o livro descrevesse uma monótona trajetória pendular vertical, quase regular. Uma meia-luz vinda de fora delineava formas tímidas pelo aposento. Ao lado do catre via-se um criado-mudo sobre o qual jaziam migalhas de pão e uma xícara velha, amarelada, em cuja boca agregara-se uma pontilhada camada negra a tudo resistente. Tubos metálicos de modesta bitola recortavam as paredes de cima a baixo, bifurcando-se em ângulos retos e morrendo em caixas com furos precisos onde a energia potencial aguardava em silêncio o momento de transformar-se em movimento. Daí em diante era o reino do negrume. De vez em quando algum reflexo inesperado inundava brevemente o aposento com uma luz fria, para então deixá-lo intocado.
Da janela vinham os ruídos contínuos, parecidos com chuva, do rolamento da borracha sobre o asfalto. Os carros passavam velozes pela avenida. X. observava suas trajetórias retilíneas e seus condutores solitários. O fluxo dos bólidos não era constante. A intervalos ritmados os discos coloridos dos semáforos exibiam cores diferentes, à visão das quais os condutores iniciavam uma progressiva desaceleração das máquinas até o repouso, para dali a poucos segundos – sob o efeito duma nova mudança cromática no semáforo – colocá-las mais uma vez em movimento, reiniciando um ciclo infinito, jamais se cansando ou perdendo o andamento. Árvores balançavam galhos majestosos preguiçosamente, as folhas múltiplas buscando um sol retirante. Às vezes um vento qualquer as agitava, e só.
Ademais, concreto e vidro. Ângulos rajados, linhas verticalíssimas, tudo salpicado de regulares janelas abertas ora para a escuridão interior ora para uma luz fria e gasosa. Monumentais caixas de fósforo silenciosas. Pulsando por dentro com angústias, solidões, orgasmos, mentiras, paixões violentas e suicídios. Fermentando vida. Aguardando o dilúvio. Zumbindo como abelhas invisíveis e cegas.
Um som doce e profundo espalhou-se pelo ar. Eram os sinos anunciando as horas. Havia por perto um templo dedicado a um deus há muito morto. Mesmo assim, alguns fiéis remanescentes ainda buscavam algum refúgio ali. O carrilhão, após dar seis sólidas badaladas, passou a uma profusão sonora repleta de tétrades maiores, menores e diminutas. Ondas de som carregaram as notas reverberantes até os tímpanos de X. Seu complexo organismo traduziu e retraduziu essa mensagem acústica para diversos códigos elétricos e impulsos químicos, ao cabo dos quais X. levantou as sobrancelhas. Seu rosto permaneceu imóvel como o de um lagarto, os olhos fixos no infinito de sua janela.
Súbito, ergueu-se e parcimoniosamente abriu as folhas de madeira do guarda-roupas. Tirou algumas peças empoeiradas da escuridão. Vestiu-as defronte o espelho, mas sem fitá-lo a não ser por um único instante, quando um olhar de esguelha quase pousou sobre os fundos olhos do homem jovem, magro e barbado do espelho.