quinta-feira
meio
Às vezes não há meio melhor para descrever um sentimento difuso e inapreensível do que discorrer longamente sobre uma paisagem.
sexta-feira
a estepe
Uma planície. Extensa. A vegetação tímida acarpeta o chão, fazendo-o algo entre verde e cinza. Uma fina névoa limita a visão a um horizonte difuso e o ar repousa sobre si mesmo. Acima jaz o céu infindável, incolor, irreal. Não há ruídos. Não há insetos. Não há fantasmas. Só ar, chão e grama selvagem.
Eu gostaria de afundar meus dedos na terra úmida, sentir seu cheiro orvalhado e sua textura fugidia.
Eu gostaria de afundar meus dedos na terra úmida, sentir seu cheiro orvalhado e sua textura fugidia.
segunda-feira
em favor do espírito trágico
Não há mais força nos verbos. Estamos prostrados sob a impotência das ações da linguagem. A contínua demolição das qualidades intrínsecas às coisas – ou melhor, a reclassificação de tais como miragens do eu – fez com que todo sujeito caísse de joelhos perante o Sistema. Sistema esse que sublevou o indefinido e racionalizou a vida. Para o sujeito do conhecimento, dada a condição do mundo ser uma vasta pluralidade de objetos, resta a própria cognição deste mundo, nas representações sonhadas e vividas. Logo, abrem-se diante de nossa vista quadros esquisitos: uma miríade de sujeitos representacionais a competir para abarcar de um só golpe de vista toda a pluralidade de facetas dos conteúdos das representações e dos objetos dos sentidos. Abarcar na acepção antediluviana do termo. Temos exemplos desse movimento nas artes, nas ciências, na economia, nos tortuosos caminhos das relações interpessoais e em quaisquer áreas que não resistiram ao processo pós-moderno de fragmentação e dissolução, ou que não foram capazes de superá-lo na direção de novas qualidades intrínsecas (o que bem pode ser uma negação, dando assim o Sistema conta de engolfá-la – o Sistema é totalitário). Tal cenário nos levanta questões ambíguas. Se por um lado há o desespero próprio de tão inusitada situação, e a metafísica implícita em tal salto, por outro há a possibilidade de surgirem novidades no campo semântico, ou melhor, de uma nova fase da revolução no campo semântico. Disto há exemplos em esferas relativamente marginalizadas no conjunto dos campos que, reiterados, compõem a episteme atual: algo na psicologia, na física, na música. Ora, possuímos acima todos os elementos de uma crise. Cisões entre campos outrora irmãos, parricidas epistemológicos, subjugações semânticas de toda sorte. Há também um consenso, ora silencioso, ora ensurdecedor, acerca da pluralidade e da extensão de tal crise. Os silenciosos afirmam a consolidação dos valores herdados da segunda fase do capitalismo tardio, seu estabelecimento global e sua interconexão com todos os aspectos da vida vivida e pensada, sua profunda quantificação esterilizante do espírito. Os gritantes clamam a chegada de um novo elo na corrente histórica humana, com a gênese de um paradigma capaz de amarrar as pontas frouxas do macro-sistema lógico-simbólico (o Sistema). Em outras palavras, há resumidamente duas perspectivas aparentemente opostas sobre a crise, porém ambas concordam em relação à sua envergadura e à sua natureza. Tal concordância nos remete à idéia de ser o futuro uma construção constante da atualidade e, assim, o primeiro carrega os vícios e ilusões da segunda. Mas seria a recíproca verdadeira? Ao caminharmos cada vez mais velozes rumo ao nosso destino, não estaríamos sendo limitados pelo mesmo? O mero fato de que é possível fazer-se esta pergunta obriga-nos a separarmo-nos tanto dos silenciosos quanto dos gritantes. Nós, órfãos rebeldes, nos voltamos para as representações do eu e suas multiplicidades, para a cambiante refração do mundo no prisma dos sentidos, a fim de conservar a última gota de honestidade, força e espírito trágico em nós. Até que não se possa tocar nenhuma superfície macia com as pontas dos dedos. Quando até mesmo isso for demolido, ou seja, quando a crise chegar ao seu termo, será colocado um ponto na história do Ocidente. Não me é possível imaginar sequer o que viria a ser um indício dessa distante aurora.
terça-feira
Drummond fala
Segue um trecho do poema "Era Manhã de Setembro":
"
(...)
O capítulo do ser
o mistério de existir
o desencontro de amar
eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia
radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa
para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa
e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo
(...)
"
"
(...)
O capítulo do ser
o mistério de existir
o desencontro de amar
eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia
radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa
para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa
e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo
(...)
"
sexta-feira
vontade
(...)
Eu gostaria de ser perpassado pelo seu segredo e diluir-me na praia alva do teu seio. Me faz profundo, me faz teu.
Eu gostaria de ser perpassado pelo seu segredo e diluir-me na praia alva do teu seio. Me faz profundo, me faz teu.
eu, rio
Nasci em numa região altiva, do seio de rochas vulcânicas. Discreto, emitindo um chiado mínimo, formei poças cristalinas. O suor das montanhas foi meu alimento, as lágrimas do céu minha água e a vida vegetal e animal minhas contrapartes espirituais. Com o tempo tornei-me caudaloso e profundo, correndo mais rápido, com maiores aspirações à perenidade ao mesmo tempo em que mais turbulento e instável. Carreguei infindáveis torrentes de sedimentos em meu leito, não mais permitindo que heras fixassem-se às margens. Poluí-me e renovei-me. Antevejo meu irrevogável destino e, ao fazer isso, desejo-o em segredo: ficarei raso, ilhas rasgarão minha superfície, sentirei um gosto salgado na boca e abrirei um delta para morrer no oceano, brutalmente diluído, arrastando todo um mundo para o fundo do silêncio.
maya II
Um dia ainda farei um longo compêndio em ordem alfabética de minhas ilusões, classificadas e comparadas, para ter a impressão de que as conheço tão bem que posso domá-las. Então tentarei emparedá-las junto às denunciadas pelos grandes livros, especialmente os que não julgo tão fruto da vaidade quanto da necessidade. A que conclusões chegaria? Provavelmente, que os conteúdos repetem-se nos homens, ou melhor, que os conteúdos manifestam-se através dos homens. Quando duas pessoas conversam, muito longe da impressão vaga de comunicação, há um aperto de mãos entre palavras, encaixes semânticos e lógicos que cordialmente cumprimentam-se na rua. As tentativas de tocar o outro, sobretudo as desesperadas, esbarram no Véu. Quão confortável é pensar que estamos em contato uns com os outros... E, no entanto, quem partilha desse falso conforto experimenta uma falsa suspensão momentânea da solidão. Raros são os momentos em que o Véu se abre. Neles não há palavra, não há lógica - pelo menos não aquela lógica que faz sentido. Eles são preenchidos por longos silêncios às vezes desassossegados, às vezes pacíficos. São quentes e úmidos como a floresta à noite, sua presença apenas discernível à nossa frente. São o hálito da vertigem; a percepção ora difusa ora aguda da consciência por trás dos olhos (claros ou escuros, olhos são negros).
quinta-feira
quero
Quero seu colo. Quero suas mãos doces no meu cabelo. Quero seu cheiro ao meu redor. Quero a realidade e a atualidade de ser envolvido pelo amor que emana dos seus olhos.
para Camus
Hoje eu vi a face do desespero. Um homem-sanduíche perambulando pelo centro anunciando vagas de sub-empregos. Magro, barbudo, velho. Perplexo e atordoado. Não há como vê-lo e não ser invadido por uma lucidez dilacerante.
domingo
antidualismo
Singular ser o homem. Pela memória molda o passado, pela esperança antecipa o futuro. Com que ânsia bebemos da jarra da esperança! E com que fanatismo agarramo-nos em nossas memórias mais obscuras e fantasmagóricas... O presente, nesse contexto, revela-se como a fugaz conversão da potência do vir-a-ser e todas suas decrescentes probabilidades em lembrança e hábito enevoando-se à medida que se distancia. Todo esse drama banal, cotidiano, semanal, policentenário desenrola-se apenas na nossa mente. Séculos, milênios de sucessão, de representação do tempo, de esquecimento. Os cães do Oblivion não possuem olhos, só bocas enormes com mil dentes, como vermes faraônicos, a constantemente rasgar e digerir as franjas da memória que se esvai contínua e certamente. Tais seres jamais sentem fome. São como guardiães de um mundo proibido, inacessível, impensável. Simbolicamente, são um dos limites da inteligibilidade do mundo. Por outro lado, há a vinda do futuro como irrevogável. A consciência do fim, ou seja, quando o universo em mim cessar de ser e dissolver-se, é fonte de uma tal angústia que só os humanos são capazes de sentir, sofrer e dar sentido. E, no entanto, apesar de nossas tentativas ora frias e pensadas, ora loucas e românticas, nossa capacidade de moldar o futuro é quase tanta quanto de moldar o passado. Isso já é bem grande. Mas ainda assim (valeu Maquiavel) as avalanches da fortuna continuam rompendo os diques da virtú, e a bruma da manhã continua envolvendo o barquinho a remo da consciência. Sobra o presente, o fugaz, vasto, eterno presente. Quanto menos palavras (gotas de outros tempos) precisamos para contemplá-lo, mais viva torna-se sua imagem. Pintá-lo em vermelho, amarelo, magenta, cobalto, grená, limão. Cessa a razão, cessa o discurso, a esperança e a memória. E então POU! CRASH! HURRAH! Malabarismo com bolas de basquete em corda bamba sobre cataratas do Iguaçu. Cachorro amordaçado com linguiça. Torrada com geléia amarrada em costas de gato em órbita.
quinta-feira
despertar I
Certas vezes o silêncio vem aliado a uma imensidão vazia vinda não sei de onde. Como se grandes espaços vagos ondulassem ao meu redor; mas ao abrir os olhos o espaço define-se como próximo e - não raro - opressivo. É um sentimento indefinido, de difícil caracterização. A iminência de obrigações cotidianas, o céu alvo, brilhante e estéril, essa amplificação dos ruídos que o silêncio traz, o claustro bem tolerado da metrópole, a solidão. Nesses momentos, internalizo o deserto e torno-me nômade, beduíno, caravana e miragem de mim. Como a aérea tartaruga marinha bicentenária e imensa dos meus sonhos flutuando na vastidão dégradé dos oceanos mais profundos.
saudades
Aqui chove e garoa há quarenta horas. Os dias, cinzas, parecem não-nascidos, ocultos sob muitas camadas de lençóis almofadados. O ruído da água é preguiçoso e melancólico quando ouvido através das janelas cerradas. O Arthur, numa conversa meio mineira, longínqua, me fala como toda a efetividade assenta-se sobre uma única coluna subjetiva; deito-o de lado, perto do copo vazio, e espero que a qualquer momento você abra a porta da frente, com uma malinha manca, de sobretudo bege. O cheiro dos cabelos lisos e negros, o sabor do pescoço convidativo, a faísca nos olhos, o corpo que chama... Noites em claro, dias em sombra. Com muito amor e saudades, do seu, Rafa.
segunda-feira
desculpas e obrigado
...sem internet em casa o acesso fica muito limitado. Mas os textos continuarão a se derramar por aqui em mais volume e fluidez. Obrigado a todos que contribuíram com comentários... e continuem visitando a página de vez em quando que, quem sabe, algo de novo surgirá.
terça-feira
tirando a poeira
Topei com esse texto. Já se passaram três anos. O pseudônimo foi uma tentativa de criar um texto coletivo em que vários autores escrevessem sob a mesma máscara. O objetivo então era compor um autor, desconexo e complexo, com várias facetas contraditórias. Mas ninguém nunca continuou a brincadeira a não ser eu mesmo, o que me valeu uma impressão bem forte de que eu era incoerente. Bem, quem sabe agora vai.
"Roscharch" ou "Radiação de Fundo"
parte 1 de x
Por aqui, disse o homenzinho meio careca, guiando Eustáquio pelos corredores de paredes descascadas erepletas de infiltrações caleidoscópicas. Tlin tlin. Sentia-se um agradável cheiro de feijão e o homenzinho pensou na invisibilidade de todas as almas confinadas naquela construção mais antiga que ele próprio. Seria como os imensos cupinzeiros que costumava demolir – não sem antes contemplá-los longamente – quando era (tlin tlin tlin) criança pelos matos e capins de um idílico e saudoso interior. Sempre ouvira falar da metrópole; os imaginativos prédios deviam ser como cupinzeiros e os seus habitantes como cupins. Hoje ele virou um cupim. Tlin. Após virar à esquerda e subir dois lances de escadas sem nem sequer verificar a posição daquele incomum visitante que o seguia, deteve-se diante da porta do apartamento 37. Meteu a mão no bolso e pegou um musical molho de chaves que fez tlin tlin tlin tlin até que uma fosse escolhida. Eustáquio coçava as palmas das mãos. O cheiro de feijão começou a ficar denso depois que se misturou à anedótica fleuma do homenzinho. É aqui, doutor Shiitake. É Eustáquio; Eustáquio, entendeu? Sim, doutor Shiitake, fique à vontade, por favor, agora tenho que voltar para o meu serviço, mas qualquer coisa pode mandar me chamar. Dito isto deu meia volta e sumiu pelas escadas, levando consigo o onipresente cheiro de feijão e todos aqueles tlin tlin tlins. Seu lugar foi ocupado por um incisivo odor de velhice, mofo e morte. Eustáquio fechou a porta atrás de si comum gesto perplexo, contemplando diretamente a melancólica cena obscura que se prostrava perante toda sua vista. Instintivamente atravessou a atmosfera doentia da sala em direção às cortinas, abrindo-as como quem destrói teias de aranha em catacumbas egípcias e escancarou a janela com um gesto quase brusco. Uma claridade baça e cinzenta invadiu o interior estagnado e lentamente os miasmas infectos dos anos começaram a ceder lugar ao veneno que os metropolitanos apelidaram, talvez por ironia, talvez por inocência, de ar. Contornos se deixaram perceber. Um sofá. Uma mesa com quatro cadeiras. Um espelho oxidado. Quadros baratos. Papéis espalhados pelo chão segundo as rígidas fórmulas da teoria do caos. Por todos os lados, uma ausência que não poderia passar desapercebida. Bem, vamos ao trabalho. Mas por onde começar?
"Roscharch" ou "Radiação de Fundo"
parte 1 de x
Por aqui, disse o homenzinho meio careca, guiando Eustáquio pelos corredores de paredes descascadas erepletas de infiltrações caleidoscópicas. Tlin tlin. Sentia-se um agradável cheiro de feijão e o homenzinho pensou na invisibilidade de todas as almas confinadas naquela construção mais antiga que ele próprio. Seria como os imensos cupinzeiros que costumava demolir – não sem antes contemplá-los longamente – quando era (tlin tlin tlin) criança pelos matos e capins de um idílico e saudoso interior. Sempre ouvira falar da metrópole; os imaginativos prédios deviam ser como cupinzeiros e os seus habitantes como cupins. Hoje ele virou um cupim. Tlin. Após virar à esquerda e subir dois lances de escadas sem nem sequer verificar a posição daquele incomum visitante que o seguia, deteve-se diante da porta do apartamento 37. Meteu a mão no bolso e pegou um musical molho de chaves que fez tlin tlin tlin tlin até que uma fosse escolhida. Eustáquio coçava as palmas das mãos. O cheiro de feijão começou a ficar denso depois que se misturou à anedótica fleuma do homenzinho. É aqui, doutor Shiitake. É Eustáquio; Eustáquio, entendeu? Sim, doutor Shiitake, fique à vontade, por favor, agora tenho que voltar para o meu serviço, mas qualquer coisa pode mandar me chamar. Dito isto deu meia volta e sumiu pelas escadas, levando consigo o onipresente cheiro de feijão e todos aqueles tlin tlin tlins. Seu lugar foi ocupado por um incisivo odor de velhice, mofo e morte. Eustáquio fechou a porta atrás de si comum gesto perplexo, contemplando diretamente a melancólica cena obscura que se prostrava perante toda sua vista. Instintivamente atravessou a atmosfera doentia da sala em direção às cortinas, abrindo-as como quem destrói teias de aranha em catacumbas egípcias e escancarou a janela com um gesto quase brusco. Uma claridade baça e cinzenta invadiu o interior estagnado e lentamente os miasmas infectos dos anos começaram a ceder lugar ao veneno que os metropolitanos apelidaram, talvez por ironia, talvez por inocência, de ar. Contornos se deixaram perceber. Um sofá. Uma mesa com quatro cadeiras. Um espelho oxidado. Quadros baratos. Papéis espalhados pelo chão segundo as rígidas fórmulas da teoria do caos. Por todos os lados, uma ausência que não poderia passar desapercebida. Bem, vamos ao trabalho. Mas por onde começar?
sexta-feira
selflessness
Snow white and cobalt blue beaches lie on the bleak veins of the all-devouring time, stretching their bends throughout my days and depositing tiny crystals all over. I wait for the walrus to come. Its fangs and thick skin are condensed within the thin and cold breeze that the everlasting and everchanging ocean brings. Its eyes like a mirror present an empty puzzle. Its arrival is an acute awareness of my being a consequence of incoherent factors. I wait in an awkward stillness, the soft soil roaming beneath my bare feet.
quarta-feira
comentário sobre a primeira sinfonia em mi bemol menor de Alessandro Di Eléia
Estreou ontem no Salão Nobre da Multiteca Mentalis a primeira obra sinfônica do compositor capadócio Alessandro Di Eléia. Escrita para cordas, percussão e difusão eletroacústica, a obra apresenta-se em três movimentos: Adagio, Andante e Allegro ma non troppo un poco dolce. A Orquestra da Gávea foi conduzida com serenidade e brilhantismo por Gustav Bloch-Bauer.
No primeiro movimento há uma impressão constante de queda dada por longos e melancólicos glissandi dos violoncelos. Somada às intervenções leves mas ágeis da seção rítimica, essa impressão adquire uma certa serenidade, como se vislumbrássemos uma pluma a descrever uma trajetória perfeitamente vertical numa infinita câmara de vácuo mantida por um pulsante motor elétrico. À medida que as violas e violinos desdobram os glissandi em muitas vozes unidas por tensões de segunda menor e trítonos e a queda sem aceleração vai ganhando profundidade, a imagem simultaneamente tensa e estática da pluma metamorfiza-se na solidão ainda incômoda do hindu que, ao inalar ópio, deixa-se levar pela torrente viva do Universo vivisseccionado correnteza abaixo, perdido de si e sem comunhão alguma com nada de nenhuma espécie. Surge a Angústia com os contra-baixos.
O segundo movimento - Andante - é continuação e desenvolvimento do primeiro, não podendo ser separado dele. Di Eléia conduz-nos por acres vales noturnos e sendas desérticas até planícies que repousam ao fundo de vastas escarpas elevadíssimas. Há um pulso grave na percussão e as violas marcam passos débeis e irregulares. Cambaleamos erráticos num deserto onde assobia um vento gélido vindo da difusão eletroacústica e das sétimas maiores dos violinos. É possível ouvir os minúsculos roçares das peles de diminutos animais sobre pedras milenares de terças menores, que testemunharam toda a algaravia lentíssima e geológica que moldou aquela paisagem ao longo das eras. "Mas essa ainda é a paisagem desoladora à qual chegamos pela penumbra da Angústia" - é como se os contra-baixos nos relembrassem de nossa origem orgânica. Na passagem do segundo para o terceiro movimento surgem os lobos e raposas da tundra, que multiplicam-se e adentram o Allegro final com uivos desesperados e demoníacos, rasgando a tecitura dos instrumentos orgânicos através da difusão eletroacústica.
O último movimento caracteriza-se pelo contraponto entre o vento sibilante, a queda da pluma da consciência no vácuo do ópio hindu e os passos - agora menos irregulares - pelas pedras milenares trincadas até o nível atômico pelos gritos exasperantes da vida em solidão das raposas. A dinâmica, no entato, não altera-se tanto, passando do pianissimo do Andante a um doce mezzo-forte. Os uivos eletroacústicos em fuga começam a se encontrar em algumas quintas justas e quartas aumentadas, ainda distantes uma sétima maior do pulso, evocando uma sonoridade lídia. É como se o conjunto dos instrumentos melódicos sugerisse a vida que clama por si, a lutar contra as abstrações da harmonia; lentamente esta também começa a cessar suas generalidades sublimes e estéreis para pulsar em centenas de colcheias em todos os pontos da escala cromática, pintando um estrelado e cintilante céu-da-boca. Há um gosto metálico atrás da língua.
Então, súbito, a música pára, o senhor Bloch-Bauer deixa cair os braços ao longo do corpo, vira-se e do Salão Nobre irrompe o chiado dos aplausos como um infinito mar a quebrar uma onda contínua de espuma, sal e luar.
No primeiro movimento há uma impressão constante de queda dada por longos e melancólicos glissandi dos violoncelos. Somada às intervenções leves mas ágeis da seção rítimica, essa impressão adquire uma certa serenidade, como se vislumbrássemos uma pluma a descrever uma trajetória perfeitamente vertical numa infinita câmara de vácuo mantida por um pulsante motor elétrico. À medida que as violas e violinos desdobram os glissandi em muitas vozes unidas por tensões de segunda menor e trítonos e a queda sem aceleração vai ganhando profundidade, a imagem simultaneamente tensa e estática da pluma metamorfiza-se na solidão ainda incômoda do hindu que, ao inalar ópio, deixa-se levar pela torrente viva do Universo vivisseccionado correnteza abaixo, perdido de si e sem comunhão alguma com nada de nenhuma espécie. Surge a Angústia com os contra-baixos.
O segundo movimento - Andante - é continuação e desenvolvimento do primeiro, não podendo ser separado dele. Di Eléia conduz-nos por acres vales noturnos e sendas desérticas até planícies que repousam ao fundo de vastas escarpas elevadíssimas. Há um pulso grave na percussão e as violas marcam passos débeis e irregulares. Cambaleamos erráticos num deserto onde assobia um vento gélido vindo da difusão eletroacústica e das sétimas maiores dos violinos. É possível ouvir os minúsculos roçares das peles de diminutos animais sobre pedras milenares de terças menores, que testemunharam toda a algaravia lentíssima e geológica que moldou aquela paisagem ao longo das eras. "Mas essa ainda é a paisagem desoladora à qual chegamos pela penumbra da Angústia" - é como se os contra-baixos nos relembrassem de nossa origem orgânica. Na passagem do segundo para o terceiro movimento surgem os lobos e raposas da tundra, que multiplicam-se e adentram o Allegro final com uivos desesperados e demoníacos, rasgando a tecitura dos instrumentos orgânicos através da difusão eletroacústica.
O último movimento caracteriza-se pelo contraponto entre o vento sibilante, a queda da pluma da consciência no vácuo do ópio hindu e os passos - agora menos irregulares - pelas pedras milenares trincadas até o nível atômico pelos gritos exasperantes da vida em solidão das raposas. A dinâmica, no entato, não altera-se tanto, passando do pianissimo do Andante a um doce mezzo-forte. Os uivos eletroacústicos em fuga começam a se encontrar em algumas quintas justas e quartas aumentadas, ainda distantes uma sétima maior do pulso, evocando uma sonoridade lídia. É como se o conjunto dos instrumentos melódicos sugerisse a vida que clama por si, a lutar contra as abstrações da harmonia; lentamente esta também começa a cessar suas generalidades sublimes e estéreis para pulsar em centenas de colcheias em todos os pontos da escala cromática, pintando um estrelado e cintilante céu-da-boca. Há um gosto metálico atrás da língua.
Então, súbito, a música pára, o senhor Bloch-Bauer deixa cair os braços ao longo do corpo, vira-se e do Salão Nobre irrompe o chiado dos aplausos como um infinito mar a quebrar uma onda contínua de espuma, sal e luar.
sábado
sexta-feira
maya I
Não há percepção que possa ser considerada não-real, pois "não-real" é um joguete semântico. A própria natureza da realidade já pressupõe a ilusão. A acepção cotidiana de real nos leva a imaginar um oposto, uma vez que esta limita-se a um compartilhamento, a um lugar-comum, uma concordância polida, cujas regras variam rapidamente no espaço mas arrastam-se pelo tempo.
quinta-feira
para Simone de Beauvoir
Passavam densas, cinza sobre cinza. Opressoras em suas massas, eu suas cores, todas elas. Falaram-me da extensão do real e de suas superposições cujos nomes são um: sonho. Demonstraram-me a física onírica dos detalhes intricados da Vastidão. Então, súbito, o trovão; ondas titânicas marejando e retorcendo-se, formando franjas e marolas no tecido irregular daquela tarde. O ar eletriza-se. A chuva cai sobre a chuva.
sexta-feira
ideograma
meias palavras sussurradas entre camadas de lençóis lânguidos como se a noite fosse sã o bastante para abrigar tamanha insanidade lúcida tão infinitamente lúcida e físico-química em toda a extensão balbuciante das coxas entre as coxas por entre meios lençóis de palavras lânguidas sumindo sutilmente no ar como bolhas de sabão perseguidas por uma criança a correr nas margens do lago formado no umbigo de um deus placidamente deitado nu sobre águas púrpuras da cor da pele das coxas por entre as coxas a refletirem suados néons solitários da exterioridade mundana que nada mais tem de real já que seduzida foi por organismos orgasmáticos na dança da vida frágil como o orvalho da manhã e no entanto lúcida tão infinitamente lúcida que é sem jamais chegar a ser
terça-feira
uma drágea angular e fibrosa
Raro é o prazer de se descobrir um novo autor com o qual descobre-se a si mesmo. Nestas férias deparei-me com um que há tempos desejava experimentar. Como a um novo drinque, uma mistura cujo sabor ainda não era capaz de conceber. Segue sem desnecessários comentários o excerto de "Diário de um ladrão", texto autobiográfico de Jean Genet:
"(...) Outras vezes, eu me recomendava não a Deus mas àquela náusea que me faziam experimentar os ofícios religiosos, a sombra das capelas em que vigiam virgens e velas vestidas para o baile, o canto dos mortos ou o simples apagador das velas. Anoto essa curiosa impressão pois tinha uma certa analogia com a que, durante toda a vida, hei de conhecer em circunstâncias muito afastadas do que acabo de descrever. O Exército, as instalações da polícia e os seus hóspedes, as prisões, um apartamento assaltado, a alma da floresta, a alma de um rio (a ameaça - repreensão ou congratulação pela sua presença de noite) e, cada vez mais, cada mesma sensação de nojo e temor que me faz pensar que a idéia de Deus eu a alimento nas minhas tripas."
sexta-feira
A forma do nada
A forma do nada é curva
de deslizar entre os dedos,
esguia como sonhos turvos
esquecidos ao despertar.
Se espreita-a por um momento,
a outro a consciência enfastia-se
e, longe de ter fim, a infinitesimal noite
refrata-se em cristais azeviches:
uma presença
ausente
de cor
no chuvisco intermitente
da solidão advinda do convívio,
do silêncio ruidoso dos dias,
da satisfação no vício,
do vício virtuoso de escrutinar
ao sol do meio dia
o negrume
da vigília;
couraça
eis o nada
um lobo na esquina
uma lembrança pré-uterina
uma forma volitiva
;
gramaticalmente errônea anti-substância do ser,
objeto do não-viver,
o conhecimento da destruição
do conhecimento,
o pesar ao pensar,
o escrever ao fugir,
a fuga ao amar,
a entrega à renúncia,
a vida que finda
por si só
por si
só
s
ó
por
s
i
.
de deslizar entre os dedos,
esguia como sonhos turvos
esquecidos ao despertar.
Se espreita-a por um momento,
a outro a consciência enfastia-se
e, longe de ter fim, a infinitesimal noite
refrata-se em cristais azeviches:
uma presença
ausente
de cor
no chuvisco intermitente
da solidão advinda do convívio,
do silêncio ruidoso dos dias,
da satisfação no vício,
do vício virtuoso de escrutinar
ao sol do meio dia
o negrume
da vigília;
couraça
eis o nada
um lobo na esquina
uma lembrança pré-uterina
uma forma volitiva
;
gramaticalmente errônea anti-substância do ser,
objeto do não-viver,
o conhecimento da destruição
do conhecimento,
o pesar ao pensar,
o escrever ao fugir,
a fuga ao amar,
a entrega à renúncia,
a vida que finda
por si só
por si
só
s
ó
por
s
i
.
quinta-feira
abertura
Exteriorizar uma imagem sonora é dar-lhe alguma realidade mais definitiva que aquela área de realidade vivida não no tempo mais ou menos linear das ações irrevogáveis, mas na constante atualidade de uma melodia que pulsa e ondula ou de blocos harmônicos superpostos em sutil desequilíbrio? Mmm... Percebo que escrevi realidade. Mas que palavrinha mais vazia de conteúdo. Tudo pode preenchê-la assim como nada a esgota. Complica-se ainda mais se a questão é a definitividade de qualquer realidade. Tudo é fugaz. Ou melhor, tudo flui. O registro escrito sobre papel seria mais longevo. Mas, além da minha consciência pesada ao pensar em árvores, seus habitantes e todo o intricado sistema de relações orgânicas ameaçado com o meu esporádico afã pela durabilidade, alimento uma vaga e rarefeita ilusão de que há uma espécie de comunidade ou, como no obscuro conto do Borges, uma seita, sabe-se lá, talvez mesmo uma força imaterial, invisível, uma radiação mais lenta, fruto do meu contato prematuro com a ficção (como é mesmo o nome do autor que nos alerta para as perniciosas influências da arte na conduta mental dos indivíduos?), capaz de dar as mais diversas interpretações a estes fragmentos que, por si, teriam talvez menos leitores no papel. Contudo, estes poucos leitores - digo-o porque os conheço - são como as poucas estrelas de uma constelação austral nas quais leio a minha posição relativa em um globo inteiramente coberto por profundos e espessos oceanos...
Estes fragmentos são dedicados a todos que os lerem, especialmente àqueles que estão sempre ao meu lado. Sobretudo você, Vi.
Estes fragmentos são dedicados a todos que os lerem, especialmente àqueles que estão sempre ao meu lado. Sobretudo você, Vi.
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