Estreou ontem no Salão Nobre da Multiteca Mentalis a primeira obra sinfônica do compositor capadócio Alessandro Di Eléia. Escrita para cordas, percussão e difusão eletroacústica, a obra apresenta-se em três movimentos: Adagio, Andante e Allegro ma non troppo un poco dolce. A Orquestra da Gávea foi conduzida com serenidade e brilhantismo por Gustav Bloch-Bauer.
No primeiro movimento há uma impressão constante de queda dada por longos e melancólicos glissandi dos violoncelos. Somada às intervenções leves mas ágeis da seção rítimica, essa impressão adquire uma certa serenidade, como se vislumbrássemos uma pluma a descrever uma trajetória perfeitamente vertical numa infinita câmara de vácuo mantida por um pulsante motor elétrico. À medida que as violas e violinos desdobram os glissandi em muitas vozes unidas por tensões de segunda menor e trítonos e a queda sem aceleração vai ganhando profundidade, a imagem simultaneamente tensa e estática da pluma metamorfiza-se na solidão ainda incômoda do hindu que, ao inalar ópio, deixa-se levar pela torrente viva do Universo vivisseccionado correnteza abaixo, perdido de si e sem comunhão alguma com nada de nenhuma espécie. Surge a Angústia com os contra-baixos.
O segundo movimento - Andante - é continuação e desenvolvimento do primeiro, não podendo ser separado dele. Di Eléia conduz-nos por acres vales noturnos e sendas desérticas até planícies que repousam ao fundo de vastas escarpas elevadíssimas. Há um pulso grave na percussão e as violas marcam passos débeis e irregulares. Cambaleamos erráticos num deserto onde assobia um vento gélido vindo da difusão eletroacústica e das sétimas maiores dos violinos. É possível ouvir os minúsculos roçares das peles de diminutos animais sobre pedras milenares de terças menores, que testemunharam toda a algaravia lentíssima e geológica que moldou aquela paisagem ao longo das eras. "Mas essa ainda é a paisagem desoladora à qual chegamos pela penumbra da Angústia" - é como se os contra-baixos nos relembrassem de nossa origem orgânica. Na passagem do segundo para o terceiro movimento surgem os lobos e raposas da tundra, que multiplicam-se e adentram o Allegro final com uivos desesperados e demoníacos, rasgando a tecitura dos instrumentos orgânicos através da difusão eletroacústica.
O último movimento caracteriza-se pelo contraponto entre o vento sibilante, a queda da pluma da consciência no vácuo do ópio hindu e os passos - agora menos irregulares - pelas pedras milenares trincadas até o nível atômico pelos gritos exasperantes da vida em solidão das raposas. A dinâmica, no entato, não altera-se tanto, passando do pianissimo do Andante a um doce mezzo-forte. Os uivos eletroacústicos em fuga começam a se encontrar em algumas quintas justas e quartas aumentadas, ainda distantes uma sétima maior do pulso, evocando uma sonoridade lídia. É como se o conjunto dos instrumentos melódicos sugerisse a vida que clama por si, a lutar contra as abstrações da harmonia; lentamente esta também começa a cessar suas generalidades sublimes e estéreis para pulsar em centenas de colcheias em todos os pontos da escala cromática, pintando um estrelado e cintilante céu-da-boca. Há um gosto metálico atrás da língua.
Então, súbito, a música pára, o senhor Bloch-Bauer deixa cair os braços ao longo do corpo, vira-se e do Salão Nobre irrompe o chiado dos aplausos como um infinito mar a quebrar uma onda contínua de espuma, sal e luar.
sábado
sexta-feira
maya I
Não há percepção que possa ser considerada não-real, pois "não-real" é um joguete semântico. A própria natureza da realidade já pressupõe a ilusão. A acepção cotidiana de real nos leva a imaginar um oposto, uma vez que esta limita-se a um compartilhamento, a um lugar-comum, uma concordância polida, cujas regras variam rapidamente no espaço mas arrastam-se pelo tempo.
quinta-feira
para Simone de Beauvoir
Passavam densas, cinza sobre cinza. Opressoras em suas massas, eu suas cores, todas elas. Falaram-me da extensão do real e de suas superposições cujos nomes são um: sonho. Demonstraram-me a física onírica dos detalhes intricados da Vastidão. Então, súbito, o trovão; ondas titânicas marejando e retorcendo-se, formando franjas e marolas no tecido irregular daquela tarde. O ar eletriza-se. A chuva cai sobre a chuva.
sexta-feira
ideograma
meias palavras sussurradas entre camadas de lençóis lânguidos como se a noite fosse sã o bastante para abrigar tamanha insanidade lúcida tão infinitamente lúcida e físico-química em toda a extensão balbuciante das coxas entre as coxas por entre meios lençóis de palavras lânguidas sumindo sutilmente no ar como bolhas de sabão perseguidas por uma criança a correr nas margens do lago formado no umbigo de um deus placidamente deitado nu sobre águas púrpuras da cor da pele das coxas por entre as coxas a refletirem suados néons solitários da exterioridade mundana que nada mais tem de real já que seduzida foi por organismos orgasmáticos na dança da vida frágil como o orvalho da manhã e no entanto lúcida tão infinitamente lúcida que é sem jamais chegar a ser
Assinar:
Postagens (Atom)